Carreira em Medicina

Casos Clínicos: Atresia de Vias Biliares (AVB)

Casos Clínicos: Atresia de Vias Biliares (AVB)

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Esse caso clínico foi retirado do livro 50 Casos Clínicos de Cirurgia, publicado pela Sanar.
Autor: Guilherme de Freitas Paganoti

História Clínica

L.G.F.S, masculino, atualmente com 2 meses e 18 dias de vida, apresenta histórico de icterícia iniciada em torno do 21º dia de vida com piora importante nas últimas 2 semanas, havia sido orientado banho de sol, mas sem melhora do quadro. A mãe refere que, em conjunto com a piora da icterícia, houve escurecimento da urina e, há 03 dias, notou que as fezes começaram a ficar brancas. LGFS é o terceiro filho de pais não consanguíneos, e seus irmãos mais velhos são saudáveis. Não há histórico familiar para doenças hepáticas ou metabólicas. Nasceu de parto normal, com 39 semanas gestacionais, APGAR 9/10, peso ao nascimento de 3,5kg, recebeu alta da maternidade com a mãe, anictérico e mamando leite materno livre demanda.

Exame Físico

• Ativo e Reativo aos estímulos.

• Peso: 5,100kg, comprimento 50cm.

• Faces: corada, hidratada, ictérica 3+/4+, sem esboço de dor ao exame, calmo.

• Ao exame físico, apesar da icterícia visível tanto pela esclera quanto pela coloração da pele, LGFS se apresenta saudável, com ganho ponderal e desenvolvimento neuropsicomotor adequados para a idade.

• Abdome levemente distendido, porém, flácido, indolor e sem massas palpáveis. Apresenta fígado palpável 3cm do rebordo costal direito, de consistência levemente endurecida, contornos finos e regulares. Baço não é palpável, mas a percussão do espaço de Traube é maciça. Sem ascite. Não se visualiza circulação colateral em parede abdominal.

• Após a retirada das fraldas para o exame, nota-se fezes acólicas e urina de aspecto colúrico. Não há hérnias inguinais, genitálias e períneo sem alterações.

Figura 1 – Acolia Fecal

Exames complementares

• TGO: 356.

• TGP: 251.

• GGT: 890.

• FA: 670.

• Bilirrubina Total: 18 / Bilirrubina Direita: 16,2 / Bilirrubina Indireta 1,8.

• Albumina: 3,9.

• INR: 1,09.

• R: 1,01.

• Fator V: 70%.

• HB: 10,9.

• Leucócitos: 6.000 sem desvio com predomínio de neutrófilo.

• Amônia: 20.

Solicitado para complementação diagnóstica a Ultrassonografia de Abdome que evidenciou fígado com ecotextura heterogênea e aumento pequeno de suas dimensões. Pequena esplenomegalia. Presença de triângulo fibroso ao nível do porta-hepatis e ausência de vesícula biliar. Doppler de porta, artéria e supra-hepáticas sem alterações. Sem ascite.

Figura 2 – Achado ultrassonográfico: triangulo fibroso (seta) e ausência de vesícula biliar. Ramos portais representados pela seta branca.

Hipótese Diagnóstica: Atresia de Vias Biliares

A confluência dos achados clínicos com laboratoriais e ultrassonográficos direcionam o diagnóstico para a atresia de vias biliares. Dos marcos clínicos, sem dúvida, a icterícia associada a acolia fecal persistente devem levantar a forte suspeita para esse diagnóstico.

Como paciente apresenta função hepática preservada, não há indícios clínicos e ultrassonográficos de cirrose avançada, a cirurgia de Kasai foi indicada para o caso.

No intra-operatório identificou-se vesicular biliar atrésica e fibrose da via biliar extra-hepática. O fígado era de consistência pouco endurecida e colestático. Baço levemente aumentado com poliesplenia. A cirurgia de derivação biliodigestiva em y-de-roux com porto-enteroanastomose ocorreu sem intercorrências.

Figura 3 – Foto da esquerda mostra aspecto intraoperatório da atresia de vias biliares (hipotrofia da vesícula biliar e fibrose da via biliar extra-hepática) com fígado colestático. Na foto da direita evidencia o baço aumentado com presença de baços acessórios.

Recebeu alta hospitalar no 8º dia pós-operatório, em bom estado geral, ictérico 1+/4+, fezes coradas e aleitamento materno exclusivo livre demanda. Na prescrição de alta recebe sulfametoxazol-trimetron, ursacol e prednisolona. Mantém seguimento ambulatorial com equipe cirúrgica e hepatologia pediátrica.

QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO

1. Pelo quadro clínico e associado a exames complementares simples é possível fazer o diagnóstico da AVB?

2. Existem fatores de risco para o desenvolvimento dessa doença?

3. Quais os fatores de pior evolução?

4. O Tratamento Cirúrgico é sempre indicado? Como é feito o seguimento para os casos que operam? E para os casos em que não se indicam cirurgia, como é feito o seguimento?

5. Todas as crianças com atresia de vias biliares vão para transplante?

Discussão

Conceito

A atresia de vias biliares, embora seja rara, é uma das principais doenças hepáticas cirúrgicas do recém-nascido e a maior causa de transplante de fígado na população pediátrica 1,2.

A característica marcante desta doença é o intenso processo de fibrose da via biliar extra-hepática levando a cirrose biliar secundária ao acúmulo de bile no fígado 1,2.

Por ser uma doença obstrutiva de via biliar, as manifestações clínicas iniciais são típicas das colestases. Icterícia com predomínio da bilirrubina conjugada, associada a colúria e acolia fecal estão presentes, com certa frequência, desde o início do quadro. Entretanto, o principal marco clínico das icterícias neonatais, que deve levantar fortemente a suspeita de atresia de via biliares é, sem dúvida, a acolia fecal 1,2.

O diagnóstico precoce é fundamental para a indicação cirúrgica e deve, sempre que possível, ser feito antes das 12 semanas de vida. Após este período existe maior chance de já ter instalado processo irreversível de cirrose e, desta forma, a cirurgia para drenagem da via biliar não traria benefício 1,2.

Epidemiologia

Não há predileção por etnias. A incidência mundial é de 1:10.000 a 1:15:000 nascidos vivos. Infelizmente sabemos que muitos pacientes pediátricos morrem de insuficiência hepática sem que a causa seja identificada, assim não temos em valores reais a atual situação da atresia de vias biliares em nosso território. Estima-se que, aproximadamente, 294 recém-nascidos desenvolvam atresia de vias biliares no Brasil anualmente 3,4.

Ainda não foram identificados fatores de risco gestacionais ou pós-natais que sejam claramente implicados na maior probabilidade de desenvolvimento da AVB na população3,4.

Patogênese

A etiologia da atresia de vias biliares ainda não está totalmente elucidada. Sabe-se que não se configura uma malformação congênita e que fatores imunológicos estejam presentes no desenvolvimento desta patologia. A teoria mais aceita atualmente é da participação de infecções virais (e dentre os agentes se destacam os reovírus, herpes vírus, rotavírus, papilomavírus, citomegalovírus) com uma predisposição imunológica mediada por HLA-B12 (além do CD4 e células NK). Desta forma, acredita-se que a AVB seja efeito da exposição a agentes infecciosos que desencadeiam uma resposta inflamatória contra a via biliar extra-hepática nas primeiras semanas de vida do recém-nascido 3,4.

Toxinas e metabólitos ainda não foram comprovadamente associados ao surgimento da atresia de vias biliares 3,4.

Diagnóstico

A história clínica de icterícia de padrão colestático nas primeiras semanas de vida de um recém-nascido deve, de fato, levantar a forte suspeita de atresia de vias biliares. O principal elemento na história é a acolia fecal, assim, todo recém-nascido que apresente este sinal deve ser investigado exaustivamente para AVB 1,2,3,4.

A complementação diagnóstica pode ser feita por exames laboratoriais simples que mostraram icterícia de padrão colestático às custas de hiperbilirrubinemia direta. Elevação das transaminases, fosfatase alcalina e gama GT são encontradas como consequências dos efeitos deletérios do acúmulo de bilirrubina aos hepatócitos. Alterações da função hepática como diminuição a albumina, alargamento do tempo de protrombina e INR costumam surgir mais tardiamente e são marcadores de falência hepática 1,2,3,4.

Ultrassonografia de abdome é um exame que pode ser diagnóstico quando realizados por profissionais com experiência. O achado de trígono fibroso com vesícula biliar vazia ou atrésica, em um recém-nascido com icterícia de padrão colestático, praticamente fecha o diagnóstico. Tomografia de abdome, Colangiorressonacia e cintilografia são úteis, mas exigem anestesia e, desta forma, não são isentos de morbidade 1,2,3,4.

A laparotomia exploradora é útil, pois confirma o diagnóstico através da visualização direta da via biliar, possibilitando a realização de cirurgia de Kasai no mesmo ato, ou mesmo a biópsia para os casos cirróticos ou com via biliar normal em que a dúvida persista 1,2,3,4. A biópsia hepática é o padrão ouro para o diagnóstico. O achado de proliferação ductular com plugs de bilirrubina fecham o diagnóstico 1,2,3,4.

Tratamento

O tratamento cirúrgico é realizado assim que confirmado o diagnóstico, e de certa forma, o quanto antes, a fim de evitar a evolução para cirrose hepática, classicamente antes da 12ª semana de vida. Entretanto, para os recém-nascidos que ultrapassam essa idade, principalmente entre a 12ª e 16ª semana, o caso ser deve ser analisado individualmente e se não houver sinal de cirrose a cirurgia é indicada 5 .

A cirurgia de Kasai consiste em uma derivação biliodigestiva em y de roux, com anastomose da alça intestinal diretamente no parênquima hepático do porta-hepatis (local da confluência dos ductos biliares direito e esquerdo, onde o processo de fibrose e atresia ocorrem na doença) 5 .

Caso o recém-nascido se apresente fora da faixa etária para a cirurgia ou tenha algum indício clínico de cirrose hepática, a cirurgia de Kasai é contraindicada e a criança é encaminhada para o seguimento ambulatorial pré-transplante 5 .

A taxa de sucesso da cirurgia é menor que 10%, ou seja, a maioria das crianças evoluirá para cirrose hepática e transplante hepático em algum momento de suas vidas. Entretanto, consideramos a cirurgia de Kasai benéfica uma vez que prolongamos o tempo de vida para o transplante, estando a criança mais velha e em condições clínicas melhores, comparativamente se indicado transplante antes do primeiro ano de vida (tempo médio em que as crianças com AVB sem Kasai são transplantadas)5.

Após a cirurgia de Kasai, o recém-nascido mantém seguimento com equipe da cirurgia pediátrica e transplante hepático. Os principais cuidados pós-operatórios são voltados para o profilaxia dos episódios de colangite que podem acelerar o processo de cirrose hepática mesmo após o Kasai. De forma rotineira se acompanha a função hepática e a formação de varizes de esôfago, assim, ao indício de piora o transplante hepático pode ser indicado 5.

Pontos importantes

• Atresia de vias biliares é a principal causa de transplante na população pediátrica.

• Icterícia de padrão colestático no recém-nascido deve ser investigada profundamente.

• O marco clínico da AVB é a acolia fecal.

• O diagnóstico pode ser feito pela clínica, associado a exames laboratoriais simples e USG de abdome.

• Tomografia, colangiorressonância e cintilografia são úteis mais agregam morbidade à propedêutica de investigação.

• Laparotomia com avaliação direta da via biliar é uma opção , pois possibilita o diagnóstico e tratamento no mesmo ato operatório. Se ainda houve dúvida possibilita a realização de biópsia hepática.

• O padrão ouro para o diagnóstico é a biópsia hepática.

• A cirurgia de Kasai deve ser feita classicamente antes da 12ª semana de vida ou, se o recém-nascido ultrapassar essa idade, na ausência de sinais e sintomas de cirrose já instalados.

• A taxa de sucesso do Kasai é menor que 10%, e serve como uma ponte para o transplante.

• O seguimento dos pacientes com atresia de vias biliares deve ser feito por equipe especializada em hepatologia e transplante hepático.