Carreira em Medicina

Casos Clínicos: Esclerose múltipla

Casos Clínicos: Esclerose múltipla

Compartilhar
Imagem de perfil de Prática Médica

História clínica

Paciente de 34 anos, sexo feminino, natural de Itabaiana (PB), procedente de Pilar (PB), parda, casada e grávida com 36 semanas de gestação retorna ao neurologista de um centro de referência em esclerose múltipla com queixa de dormência em membro superior direito (MSD) e relatando incontinência urinária. Refere surto semelhante, com dormência em membro inferior esquerdo (MIE), em julho de 2012, quando foi diagnosticada erroneamente com hérnia discal, sem receber tratamento específico para a doença. Em janeiro de 2013 teve dormência em lábio superior e hemiface (comprometimento central do nervo facial) direitos, além de dor hemicraniana direita, sendo tratada com prednisona. Em abril desse mesmo ano ela iniciou seu acompanhamento no centro de referência para esclerose múltipla, quando foi então diagnosticada com a doença e passou a ser tratada com o imunomodulador interferon beta-1a (Avonex®). Continuou o acompanhamento regularmente, seguindo as orientações médicas, administrando corretamente o medicamento e sendo tratada também por fisioterapeuta. No seguimento, apresentou melhora clínica importante e diminuição do tamanho das lesões na ressonância magnética, com ocasionais queixas de parestesias ou déficit sensitivo em determinadas partes do corpo, por vezes relacionados a episódios de estresse, sendo tratada com pulsoterapia, prednisona e/ou vitamina D, de acordo com o quadro apresentado. Em dezembro de 2014, suspendeu o imunomodulador por estar grávida. Em março de 2015, sofreu aborto. Continuou o acompanhamento, apresentando novo surto em julho de 2015, com dormência nos membros inferiores e ataxia de marcha proprioceptiva, sendo tratada com imunoglobulina. A paciente manifesta desejo de engravidar. Foi orientada que sua gravidez deveria ocorrer sem complicações, mas que havia grande risco de surtos no puerpério. Em agosto desse mesmo ano, sua medicação (o imunomodulador interferon beta-1a) foi suspensa, para que a paciente pudesse engravidar em segurança. Grávida, ela retorna com déficit sensitivo em abdômen e membros inferiores há aproximadamente 10 dias, por ter contraído infecção por Zika vírus, caracterizando novo surto e sendo prescrita administração de imunoglobulina IV por 05 dias. Sem melhora clínica, com o desenvolvimento de déficit motor em MMII e desequilíbrio e encontrando-se na 36ª semana de gestação, foi indicada cesariana para que se pudesse retomar o tratamento da esclerose múltipla e realizar pulsoterapia com dexametasona. A criança nasce e permanece bem e saudável até o momento. A paciente volta a utilizar o imunomodulador (Avonex®), sem melhora, sendo abordada possível necessidade de troca da medicação. Na presente consulta, em outubro de 2016, a paciente relata ter sido administrada imunoglobulina por 5 dias, sem melhora clínica, e ter surgido dormência em MSD e incontinência urinária. Tanto na gravidez como no puerpério, foi administrada imunoglobulina em virtude da não liberação do obstetra e do pediatra para realização de corticoterapia. Nega alergias. A paciente recebe orientações e a medicação é trocada, passando a fazer uso de Fingolimode (Gilenya®).

Exame físico

Geral: bom estado geral, lúcida, orientada no tempo e no espaço, eupnéica e afebril.

Cardiovascular: ritmo cardíaco regular, em 2 tempos, com bulhas normofonéticas. Ausência de sopros e turgência de jugular patológica.

Respiratório: murmúrio vesicular universalmente audível, sem ruídos adventícios.

Abdominal: abdome indolor à palpação superficial e profunda. Fígado e baço impalpáveis.

Neurológico: presença de déficit sensitivo global e ataxia de marcha sensitiva. Reflexo córneo-palpebral indiferente bilateralmente. Sinal de Hoffmann ausente. Neurite óptica ausente. Lesão central do nervo facial (VII) à esquerda. EDSS (Escala Expandida do Estado de Incapacidade de Kurtzke) = 2,0.

Exames complementares

Exames de imagem

Imagem 1. Ressonância magnética de crânio ponderada em FLAIR. Corte sagital de paciente apresentando lesões típicas da esclerose múltipla. Observam-se múltiplas lesões da substância branca periventricular, compondo o sinal dos “dedos de Dawson”.1 Note o maior eixo das lesões perpendicular ao corpo caloso e seu aspecto ovalado.
Imagem 2. Ressonância magnética de coluna cervical ponderada em T2, da própria paciente. Corte sagital. Lesão hiperintensa característica de doença desmielinizante comprometendo o aspecto dorsal da medula cervical.

QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO

1. Quando devo pensar que o paciente tem Esclerose Múltipla (EM)?

2. Qual o curso natural da EM?

3. Quando devo pensar em descartar o diagnóstico de EM?

4. Como fazer o diagnóstico diferencial da EM diante de tantas possibilidades?

5. Qual a relação da EM com a gravidez e o puerpério?

6. O que é o EDSS?

Discussão

A esclerose múltipla (EM) é uma doença crônica, autoimune, inflamatória e frequentemente incapacitante que compromete a bainha de mielina do sistema nervoso central (SNC).2 Sua característica clínica mais evidente é a perda subaguda de uma função sensitiva ou motora, consequente às lesões por desmielinização de qualquer parte do neuroeixo, havendo remissão parcial ou total em questão de dias ou semanas (transitória).2,3 É mais frequente em mulheres (proporção 3:1) e adultos jovens, com idade de maior incidência aos 32 anos, sendo rara acima dos 45 a 50 anos.3 A paciente do caso relatado demonstra bem tal epidemiologia.

O diagnóstico da EM é essencialmente clínico. É importante que, em caso suspeito, o médico realize na anamnese um interrogatório minucioso a respeito de sintomas como amaurose súbita, diplopia, vertigem, sintomas sensitivos e motores e até mesmo sintomas relacionados ao controle do esfíncter vesical, que, isolados e transitórios, podem não ser valorizados pelo paciente.2

Para que o médico confirme que um paciente é portador de EM, é preciso que haja inflamação do sistema nervoso em mais de um episódio. Isso é chamado de disseminação no tempo da EM e pode ser constatado através da observação clínica e/ou Ressonância Magnética.2,4 Caso o paciente apresente apenas um episódio, ou seja, caso não haja disseminação no tempo, podemos afirmar que é uma Síndrome Clinicamente Isolada, ou CIS (do inglês, Clinically Isolated Syndrome). A CIS é, assim, uma manifestação causada por inflamação no SNC que pode, ou não, ser o primeiro sintoma da EM.5

O primeiro surto costuma acometer o sistema motor. As alterações sensitivas, representadas por distúrbios da sensibilidade superficial ou profunda, aparecem geralmente em segundo lugar. O comprometimento do nervo óptico é relativamente frequente na doença; a neurite óptica pode ser a única manifestação durante vários anos.2

Situações que fogem do padrão típico da doença — como surtos em idade avançada ou início da doença com sintomas graves, a exemplo de hemiplegias, paraplegias ou mesmo estados de coma — necessitam de exames complementares para chegar ao diagnóstico. Assim, realizar ressonância magnética (RNM) e pesquisa de hipergamaglobulinorraquia do tipo oligoclonal é essencial.2,4

Na RNM, espera-se encontrar lesões típicas de doenças desmielinizantes, pericalosas e/ou periventriculares, predominantemente em substância branca supratentorial. Quanto a pesquisa de bandas oligoclonais, mais de 90% dos pacientes com EM apresentam alteração.2,4

A EM evolui de forma progressiva e imprevisível. Há um período inicial com surtos que remitem espontaneamente (fase de surto-remissão), seguido por uma fase em que os surtos são marcados por sequelas (fase transicional), e, finalmente, um período em que os surtos não reaparecem, porém a doença progride com novos incrementos nos déficits já existentes (doença secundariamente progressiva).2

O curso mais comum da doença é o remitente/recorrente, no qual os sintomas e sinais neurológicos são transitórios e imprevisíveis. O segundo curso possível é o progressivo, no qual os sintomas e sinais neurológicos instalados se intensificam sem remissão, geralmente com comprometimento motor (sistema piramidal e/ou cerebelar), mais frequente após os 40 anos.2

Há casos em que a EM é uma das hipóteses diagnósticas e é importante saber quando descartá-la. Para isso, foram determinadas as Red Flags (bandeiras vermelhas, em tradução livre).4 As Red Flags são sinais e sintomas tanto clínicos quanto de imagem. Caso presentes, deve-se pensar em descartar a hipótese de EM.4 São eles:

Tabela 1. Sinais e sintomas que, caso presentes, apontam para a exclusão do diagnóstico de esclerose múltipla a partir do exame clínico e de imagem.4

Devido à variedade de diagnósticos diferenciais para a EM e à consequente dificuldade de diagnóstico correto e precoce, são recomendadas etapas de avaliação para os pacientes com sintomas sugestivos da doença.4 Na primeira abordagem, deve-se excluir patologias que não apresentam características de desmielinização inflamatória, como doenças infecciosas, malignas, congênitas, metabólicas e vasculares, por meio de avaliação de sinais e sintomas, exames complementares, curso natural da doença e epidemiologia.4

Na segunda abordagem, deve-se diferenciar as doenças desmielinizantes inflamatórias em EM e não-EM. Nessa etapa são avaliados três tipos de pacientes: aqueles que apresentam características clínicas, de imagem e laboratoriais “clássicas” da EM, sendo outros exames ou testes provavelmente desnecessários; os pacientes com sinais e sintomas comuns na EM, mas com presença de Red Flags, sugerindo um diagnóstico alternativo; e os pacientes que apresentam apenas essas Red Flags, tornando a EM um diagnóstico improvável. Nesses dois últimos casos, é importante afastar essas doenças alternativas ou conduzir o manejo nessa direção, especialmente quando há uma chance de tratamento.4

Quanto ao seguimento da esclerose múltipla, uma ferramenta muito utilizada é a escala expandida do estado de incapacidade de Kurtzke (EDSS), um método para quantificar as incapacidades ocorridas durante a evolução da doença através da avaliação de sistemas funcionais: piramidal, cerebelar, tronco cerebral, sensorial, intestinal e vesical, visual, mental (ou cerebral) e outros. O EDSS atribui uma pontuação de gravidade à condição clínica que varia de 0 a 10, com incrementos de 0,5. É um teste amplamente utilizado e de fácil manejo para a avaliação do comprometimento físico e cognitivo dos pacientes.6

Outro aspecto relevante é que, por afetar tipicamente mulheres em idade fértil, durante muitos anos as portadoras de EM eram aconselhadas a não engravidar devido à possibilidade de deterioração neurológica.7 O estudo PRISM (The Pregnancy in Multiple Sclerosis Study) realizado na Europa procurou avaliar a influência da gravidez com o curso da EM.8 Os resultados mostraram que há um declínio significativo dos surtos durante a gestação, seguido de um agravamento durante o período puerperal.7

A gestação representa um período em que há uma maior tolerância imunológica, principalmente como mecanismo de evitar a rejeição fetal, fato associado à redução de atividades das doenças autoimunes. Diferente do ocorrido durante o estado de puerpério, no qual esse equilíbrio imunológico parece reverter, desencadeando uma nova lesão desmielinizante e provocando um novo surto da doença.8

A principal dificuldade de gestação na EM é devido à suspensão do tratamento com agentes biológicos que provocam efeitos deletérios na gestação e no desenvolvimento fetal. Por isso os Guidelines indicam a cessação dessa classe de medicamentos três meses antes da concepção, ficando disponível o uso de prednisolona e metilprednisolona nas exacerbações da EM, que apresentam um risco reduzido na gravidez. O tratamento deve ser retomado ao término da gestação, com um acompanhamento maior no pós-parto, para minimizar o risco de recorrência da doença7,8.

Por fim, ao se suspeitar da ocorrência de EM, o médico deve encaminhar o paciente ao centro de referência mais próximo, onde será avaliado, diagnosticado e tratado adequadamente, caso possua de fato a doença. É fundamental pensar em EM ao se deparar com quadro clínico compatível e investigar a doença pois, frequentemente, os pacientes recebem diagnósticos incorretos, a exemplo do caso aqui relatado, e demoram anos para firmarem seu diagnóstico.

Diagnósticos diferenciais

Habilidades/competências

• Semiologia neurológica;

• Critérios diagnósticos de Esclerose Múltipla;

• Principais síndromes neurológicas;

• Atenção aos Red Flags na avaliação da Esclerose Múltipla;

• Diagnósticos diferenciais da EM;

• Uso de exames de imagens na investigação de lesões do neuroeixo;

• Escala expandida do estado de incapacidade de Kurtzke (EDSS).

Dicas práticas

• A Esclerose Múltipla é uma doença inflamatória, autoimune e desmielinizante que acomete o Sistema Nervoso Central.

• O diagnóstico de Esclerose Múltipla é essencialmente clínico, apesar de complexo. Exames complementares podem ser úteis tanto para o diagnóstico quanto para o acompanhamento dos pacientes.

• A disseminação no tempo e espaço clinicamente e na imagem de ressonância magnética tem grande importância diagnóstica.

• O exame de imagem de escolha para avaliar esse tipo de lesão é a Ressonância Magnética.

• Cogitar o diagnóstico de Esclerose Múltipla e, posteriormente, descartá-lo é sempre melhor que deixar de diagnosticar algum portador da doença.

• Saber onde fica o Centro de Referência em Esclerose Múltipla da sua região é fundamental. É para lá que você deve encaminhar os pacientes suspeitos.