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Casos Clínicos: Hipotireoidismo na Gestação

Casos Clínicos: Hipotireoidismo na Gestação

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HISTÓRIA CLÍNICA

Paciente de 30 anos, G2PN1A0, com hipotireoidismo prévio controlado, assintomático, em uso de levotiroxina 175mcg, ácido fólico 5mg e sulfato ferroso 300mg, inicia acompanhamento em serviço de pré-natal de alto risco (PNAR) com 14 semanas e 2 dias de idade gestacional (pela data da última menstruação e pela ultrassonografia). Nega outros antecedentes pessoais e não possui antecedente de patologia obstétrica.

EXAMES FÍSICOS AO LONGO DO PRÉ-NATAL

EXAMES COMPLEMENTARES SOLICITADOS NA ADMISSÃO

QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO

1.É necessário encaminhamento de gestantes com hipotireoidismo ao serviço de pré-natal de alto risco?

2.Existe diferença no acompanhamento de uma gestante portadora de hipotireoidismo para de uma gestante eutireoidea?

3.Qual o medicamento de escolha para tratamento do hipotireoidismo na gestação?

4.Qual a importância do tratamento do hipotireoidismo na gestação?

5.O hipotireoidismo materno pode causar repercussões ao feto? Se sim, quais?

DISCUSSÃO

Distúrbios tireoidianos são frequentemente observados em mulheres em idade reprodutiva e tem como causas principais a deficiência de iodo, ainda presente em várias regiões do Brasil, e alterações no sistema imune. No caso acima, a paciente apresentou o marcador anti-TPO com valores elevados, sugerindo a etiologia autoimune. Tais distúrbios podem apresentar-se como risco à gestação, uma vez que este é um período de intensas alterações hormonais e imunológicas, além da dependência do feto dos hormônios tireoidianos e iodo da mãe.

Durante a gestação, faz-se necessário que a tireoide materna produza uma maior concentração de hormônios tireoidianos, para que sejam fornecidos também ao feto. Para uma gestante eutireoidea, esta adaptação fisiológica ocorre sem dificuldades. Todavia, quando a capacidade funcional da glândula já está previamente prejudicada, como é o caso das doenças autoimunes tireoidianas, tal ajuste não ocorre como o esperado.

Desse modo, é recomendado que seja realizado, rotineiramente, rastreamento das gestantes com risco de hipotireoidismo (como, por exemplo, em pacientes com diagnóstico prévio de hipotireoidismo em uso de tiroxina, pacientes com bócio, portadoras de diabetes mellitus tipo 1 ou antecedente de parto prematuro ou aborto), pois o tratamento com levotiroxina pode eliminar ou atenuar o risco de complicações maternas e fetais.

Estatisticamente, a ocorrência de hipotireoidismo na gestação varia em torno de 0,3% a 25%1 . Esse comprometimento hormonal está relacionado a um grande número de complicações para a mãe e para o desenvolvimento do feto. Estudos realizados com mulheres que apresentavam redução na função tireoidiana mostraram que a principal consequência materna foi hipertensão gestacional, tanto no hipotireoidismo clínico quanto no subclínico.

Outras pesquisas demonstraram maior ocorrência de pré-eclâmpsia, placenta prévia e hemorragia pós-parto nas pacientes com função tireoidiana mal controlada, quando comparado a pacientes eutireoideas. Foram observados também aumento dos índices de malformações congênitas e natimortos nas gestantes que não realizaram reposição hormonal adequada, bem como elevado número de abortos espontâneos. Nos recém-nascidos, baixo peso foi a complicação mais comum, seguida de déficit cognitivo na infância2 .

Sabe-se que o sistema nervoso central fetal depende, durante toda a gestação, de iodo e tiroxina (T4) para o seu desenvolvimento3. Dessa forma, torna-se necessária uma avaliação das crianças nascidas de mães com severa deficiência de iodo e comprometimento descontrolado da função tireoidiana, a fim de identificar possíveis sequelas neurológicas.

Recomenda-se também que as mulheres com diagnóstico prévio de hipotireoidismo devem ser aconselhadas a estabilizar a sua doença antes da gestação a fim de prevenir complicações. Porém, na realidade brasileira, a maioria das gestantes, como a do caso, não recebem acompanhamento pré-concepcional, muitas vezes pela ausência de planejamento da gestação.

Durante a gestação de uma paciente com hipotireoidismo prévio, devem ser realizados exames de dosagem hormonal de TSH e T4 com periodicidade entre 6 e 8 semanas para controle e ajuste da medicação. Como observado no caso, foi necessário aumentar a dosagem da medicação de 175 mcg para 200 mcg no intuito de manter os níveis hormonais dentro dos valores alvo, uma vez que a paciente apresentou níveis elevados de TSH e limítrofes de T4 livre.

Diversos autores têm observado a necessidade de aumento da dose de reposição de levotiroxina em 25 a 50% das doses utilizadas na pré-concepção, durante toda a gestação, retornando a dose anterior no período pós-parto, sempre de forma gradual4. A tiroxina deve ser ingerida pela manhã, em jejum. Não deve haver ingestão concomitante de ferro, cálcio, alumínio ou produtos derivados de soja, pois diminuem sua absorção.

A realização de exames laboratoriais é o método preferencial para a confirmação diagnóstica. A dosagem do TSH é mais sensível do que o T4 livre na detecção do hipotireoidismo. Se o TSH estiver alterado, deve-se dosar o T4 livre. Como as concentrações de T4 livre diminuem durante a gestação e cada laboratório determina sua faixa de normalidade para cada trimestre da gestação, recomenda-se cuidado na interpretação de seus valores. O alvo do tratamento é manter uma dosagem de TSH entre 0,5 e 2,5mU/L no primeiro trimestre ou 3,0mU/L no segundo e terceiro trimestres.

O medicamento de escolha é a levotiroxina – tiroxina livre e a dose de ataque é de 1,0 a 2,0μg/kg/dia. O tratamento consiste basicamente na suplementação hormonal direta, o que, indiretamente, irá amenizar os sintomas, caso estejam presentes.

É recomendável dosar os níveis de TSH em seis a oito semanas pós-parto e a dosagem de tiroxina deve retornar aos níveis pré-gravídicos5 . É importante ressaltar que a via de parto permanece conforme indicação obstétrica e que o aleitamento materno não está contraindicado para mulheres em tratamento para hipotireoidismo. Pacientes com suspeita de hipotireoidismo central (geralmente cursa com TSH normal ou baixo e T4 livre ou total baixo) ou paciente com hipotireoidismo usando mais de 2,5mcg/kg de levotiroxina devem ser encaminhadas ao pré-natal de alto risco (PNAR). Para os demais casos há indicação de seguimento do pré-natal na atenção primária, salvo indicações específicas ou associação a outras comorbidades.

No decorrer da gestação da paciente do caso e após o ajuste da levotiroxina, foram realizadas dosagens hormonais de TSH e T4, cujos resultados estavam dentro dos valores de referência para cada trimestre. Além disso, a paciente realizou três ultrassonografias que demonstraram perfil biofísico fetal adequado e bom crescimento fetal. Desse modo, com a conduta terapêutica adotada, a gestação prosseguiu sem intercorrências, com acompanhamento no PNAR e na atenção primária. O parto foi realizado por via natural, também não apresentando intercorrências.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS PRINCIPAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZADO/COMPETÊNCIAS

• Hipotireoidismo na gestação: diagnóstico e marcadores laboratoriais.

• Estudo semiológico do hipertireoidismo na gestação.

• Identificar as particularidades do pré-natal em pacientes com condições clínicas prévias.

• Esclarecer o manejo do hipotireoidismo na gestante.

• Elucidar a importância do manejo adequado do hipotireoidismo na gestação.

PONTOS IMPORTANTES

• Deve-se rastrear pacientes com risco para tireoideopatias no início da gestação.

• Pacientes previamente diagnosticadas devem controlar o hipotireoidismo antes de engravidar.

• Principais complicações são hipertensão gestacional e baixo peso ao nascer.

• Existe a possibilidade de comprometimento do SNC do feto por carência dos hormônios tireoidianos.

• Quanto mais precoce o diagnóstico e o uso da levotiroxina, menores os risco materno-fetais.

• O parto deve ser realizado conforme indicação obstétrica – o hipotireoidismo por si só não é indicação para realização de parto cesárea.

• O aleitamento materno deve ser orientado e estimulado, sem quaisquer restrições.