Carreira em Medicina

Casos Clínicos: Litíase Biliar

Casos Clínicos: Litíase Biliar

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HISTÓRIA CLÍNICA

32 anos, sexo masculino, natural e procedente de cidade do interior. Relata que há cerca de 03 meses vem apresentando dor em cólica, de forte intensidade, em hipocôndrio direito com irradiação para todo abdome superior e dorso. Informa que alguns episódios melhoravam com o uso de analgésicos orais. Todavia, em diversas ocasiões foi atendido em unidade de emergência e realizou analgesia intravenosa, devido à intensidade da dor. Relata que as crises dolorosas vêm associadas a náuseas e vômitos, e são desencadeadas pela ingestão de alimentos gordurosos. Nega icterícia, colúria e acolia fecal. Ritmo intestinal e aspecto das fezes normais.

EXAME FÍSICO

Bom estado geral, lúcido e orientado no tempo e espaço, normocorado, hidratado, anictérico, acianótico e afebril.

FC: 64 bpm; FR: 16 ipm; Tensão Arterial: 122×86 mmHg.

Ausência de linfonodomegalias palpáveis, sem turgência jugular.

Sem alterações.

Tórax de conformação habitual, expansibilidade preservada, murmúrio vesicular bem distribuído bilateralmente sem ruídos adventícios.

Ictus cordis em posição anatômica. Bulhas rítmicas, normofonéticas em 2 tempos, sem sopros.

Abdome plano, flácido, ruídos hidroaéreos presentes, timpânico. Indolor à palpação superficial e profunda, sem sinais de irritação peritoneal. Ausência de visceromegalia ou massas anômalas. Sinal de Murphy negativo.

Bem perfundidas, sem edemas.

Articulações sem sinais de flogose.

EXAMES COMPLEMENTARES

Figura 1. Ultrassonografia do abdome: cálculos móveis (com hiper-refringência e projeção de sombra acústica) no interior da vesícula biliar que apresenta paredes finas e regulares.

PONTOS DE DISCUSSÃO

1. Qual o diagnóstico mais provável?

2. É necessário exame de imagem para o diagnóstico? Caso sim, qual?

3. São observadas alterações laboratoriais? Qual a importância desses exames?

4. Qual a conduta terapêutica mais apropriada?

DISCUSSÃO

A presença de cálculos na vesícula (litíase biliar) é uma das doenças mais comuns do aparelho digestório e constitui um importante problema de saúde pública. Estima-se que 10% a 15% da população adulta têm ou terão cálculos biliares.1 Alguns autores afirmam que esse valor pode chegar até 20%,2 enquanto outros relatam que nas mulheres esse valor seja de 24%.3 Além dos problemas relacionados à saúde, a colelitíase também acarreta grandes custos financeiros, avaliados em torno de 6,2 milhões de dólares gastos anualmente só nos Estados Unidos. No Brasil, é a doença cirúrgica abdominal mais comum em idosos, sendo sua incidência relacionada à progressão da idade, com prevalência na população geral de 9,3%.4 Dessa forma, é raro o diagnóstico de litíase vesicular na criança, começando a ser identificada na adolescência, apresentando um marcado acréscimo na incidência entre 35 – 55 anos. Nota-se uma incidência aumentada em multíparas e em obesos.2

Os cálculos são concreções cristalinas que se formam dentro da vesícula biliar pelo acúmulo de componentes da bile. O desenvolvimento desses cálculos ainda não está firmemente estabelecido. Há mecanismos distintos para explicar sua ocorrência. Admite-se que há uma hipersecreção de colesterol pelo fígado, resultando em uma supersaturação na bile e formação de pedras. Isso seria devido a um aumento da captação hepática de colesterol, um decréscimo na produção hepática de sais biliares e síntese de éster de colesterol para formação da lipoproteína de muito baixa densidade (VLDL) associada com um desarranjo na absorção intestinal de colesterol e sais biliares.3 Pacientes obesos, diabéticos, uso de anticoncepcional oral, gravidez, envelhecimento e perda ponderal acentuada são estados os quais propiciam ao aumento da produção de colesterol.2 Admite-se ainda que os cálculos podem ser formados devido a uma dismotilidade da vesícula biliar. Mais de 70% dos cálculos são formados pela precipitação de colesterol e cálcio (colesterol puro corresponde a menos de 10%). Pedras pigmentares são causadas por concentrados de fragmentos da bile e produtos da degradação da hemoglobina, em geral em pacientes com hemoglobinopatias, como a doença falciforme.5

Diante desse conhecimento prévio sobre epidemiologia e formação dos cálculos na vesícula, ficará mais fácil o entendimento sobre a história natural da doença. Temos um paciente masculino de 32 anos com uma dor em cólica no hipocôndrio direito há cerca de três meses. Todavia, deve-se lembrar de que a maioria dos casos de colelitíase (40 – 60%) são assintomáticos, podendo ser achados esporádicos em exames de imagem na busca por outras patologias.2 Para ser sintomático, o cálculo deve obstruir uma via de saída do fluxo da vesícula biliar, como, por exemplo, o ducto cístico ou o infundíbulo da vesícula. A cólica biliar, como referida pelo nosso paciente, causada por um bloqueio temporário do fluxo biliar, tende a ocorrer após uma refeição, em decorrência da contração da vesícula biliar causada pela secreção de colecistocinina (CCK) pela mucosa gástrica após a ingestão de alimentos gordurosos. Se não ocorrer essa obstrução ou se o cálculo passa livremente pela via biliar até o duodeno sem impactar durante o trajeto, particularmente na papila biliar, o paciente será assintomático.5 A definição de cólica biliar é mais bem descrita pelos critérios de Roma: uma tríade composta de dor constante, localizada no epigástrio ou no quadrante superior direito, durando 30 minutos ou mais.6

A dor biliar é a principal queixa na maioria dos pacientes sintomáticos com cálculos biliares. Caracteriza-se como uma dor visceral de localização em hipocôndrio direito ou epigástrio e com frequência irradia-se para ombro, escápula, ou, como no caso desse paciente, para o dorso e abdome superior, em decorrência da irritação nas terminações do plexo celíaco. A característica da dor é ser constante, e não intermitente, assim, o termo cólica é, em realidade, “inadequado”.

Não temos o relato na história clínica, contudo, de uma crise típica que consiste em dor que aumenta durante 15 min à 1 h, e que permanece em platô durante 1h ou mais e depois, diminuindo lentamente. Em 1/3 dos pacientes, a dor tem início súbito e menos frequentemente, o alívio é também súbito. A dor que dura mais de 5 – 6h deve sugerir colecistite aguda associada.2

O paciente ainda se queixa de náusea e vômitos, que fazem parte do quadro associado à crise. Relatos de sudorese e eructação também são comuns. Vale ressaltar que, na grande maioria dos casos, o vômito atua como um fator de melhora, pois diminui a estase gástrica2 .

Em relação ao exame físico, o caso em questão mostra um paciente sem achados semióticos. O abdome é indolor à palpação superficial e profunda, sem sinais de irritação peritoneal e com Sinal de Murphy negativo. Este quadro não foge do padrão da doença calculosa biliar. Contudo, dor à palpação em quadrante superior direito, mais especificamente no hipocôndrio, e sinal de Murphy positivo são achados que podem ocorrer durante os episódios de crise.

Diante de um quadro inespecífico, de dor abdominal, com vômitos e náuseas, podemos pensar em vários diagnósticos distintos. A ultrassonografia (USG) é o exame complementar padrão ouro para o estabelecimento do diagnóstico, com uma sensibilidade de 95 a 98%.2 A densidade dos cálculos permite uma nítida reverberação das ondas sonoras, criando um foco ecogênico (hiper-refringência) com um sombreamento acústico característico atrás do cálculo. A maioria dos cálculos, se não estiverem impactados, vão se mover com mudanças posicionais do paciente (auxiliando no diagnóstico diferencial com pólipo).

Os exames laboratoriais são inespecíficos. O quadro clínico e a ultrassonografia são suficientes para configurar o diagnóstico e indicar terapêutica. O uso dos exames laboratoriais pode ser útil quando há complicações. As dosagens de AST, ALT, fosfatase alcalina, gama-GT e bilirrubinas podem auxiliam na suspeita de coledocolitíase (litíase no colédoco). Já uma leucocitose nos aponta para um processo inflamatório / infeccioso mais exuberante, como na colecistite aguda. Elevações nos níveis de amilase e lipase sugerem uma pancreatite, que pode ser uma complicação de um cálculo passando através do colédoco ou da papila duodenal. Elevações na LDH podem indicar gravidade do processo.5

Conceitualmente, embora os pacientes com litíase biliar sintomática geralmente sejam considerados como portadores de “colecistite crônica”, esta não é uma designação completamente precisa, porque a formação de cálculos biliares precede a inflamação.2 Em relação à terapêutica, pacientes sintomáticos de cálculo na vesícula biliar devem ser submetidos à colecistectomia eletiva por videolaparoscopia (CVL). É uma cirurgia com baixos índices de morbimortalidade; contudo, não é completamente isenta de riscos, devendo-se avaliar a relação custo vezes benefícios do procedimento. Nos pacientes assintomáticos ou com sintomas muito discretos, a taxa de incidência da crise e o risco de complicações é muito baixo (1 – 3%) ao ano. Logo, recomenda-se observação, adequação da dieta e mudanças no estilo de vida. Nos pacientes com sintomas mais severos, com risco de complicação maior, em torno de 7% ao ano, recomenda-se colecistectomia. Em mais de 90% ela é curativa, resolvendo os sintomas definitivamente5 . Para a realização da cirurgia, o paciente deve ser orientado a manter cerca de 8h de jejum prévio para sólidos, com banho que precede a operação, atentando principalmente para a parede abdominal, nas regiões umbilical e dos hipocôndrios. Deve ser orientado, ainda, a esvaziar a bexiga, para evitar a necessidade do uso de sonda vesical e para evitar lesão da bexiga durante realização do pneumoperitônio (necessário para cirurgia por vídeo). A antibiótico-profilaxia não é mais recomendada de rotina na CVL eletiva. Recomenda-se sondagem orogástrica.2 Na técnica laparoscópica, que apresenta enormes vantagens sobre a laparotomia (incisão subcostal de 9 – 12 cm) e minilaparotomia (incisão de 5 cm lateral à linha média no QSD), serão posicionados 3 a 4 trocartes (1 a 2 de 10 mm e 2 de 5 mm), sendo o umbilical utilizado para o sistema óptico.6 A realização da cirurgia com um pneumoperitônio de baixa pressão é um fator importante na redução de dor pós-operatória, particularmente devido a diminuição da irritação do nervo frênico direito.8 A colecistectomia laparoscópica está associada a menor incidência de dor pós-operatória, complicações infecciosas, assim como menor tempo de internação hospitalar e de retorno às atividades laborais, quando comparada com a laparotomia e minilaparotomia.9

Durante o intra-operatório, as complicações mais importantes observadas durante a CVL estão relacionadas à lesão das vias biliares e perfurações de alças intestinais. No pós-operatório, as complicações mais importantes são: infecções do sítio operatório, dor, íleo paralítico, complicações infecciosas.

PONTOS IMPORTANTES

• Paciente com cólica biliar suspeitar de doença calculosa biliar;

• Cólica biliar será aquela dor contínua, em quadrante superior direito, que dura 30 min ou mais;

• Litíase biliar é uma condição muitas vezes assintomática. É preciso cuidado ao atribuir como causa das dores em hipocôndrio direito/epigastro como sendo de origem calculosa;

• Um exame físico normal não exclui o diagnóstico;

• Para confirmar o diagnóstico e auxiliar na diferenciação de Colecistite aguda: ultrassonografia abdominal (padrão-ouro);

• Exame laboratorial: inespecífico. Utilizarei para investigar complicações;

• Paciente sintomático: colecistectomia eletiva (preferência: via laparoscópica).