Anatomia de órgãos e sistemas

Casos Clínicos: Síndrome do Intestino Irritável (SII) | Ligas

Casos Clínicos: Síndrome do Intestino Irritável (SII) | Ligas

Compartilhar

Área: Anatomia de órgãos e sistemas (Gastroenterologia);

Autores:Ricardo Serejo Tavares;

Co-autor: Hannah Luíza Araújo Rebouças;

Revisor: João Pedro Andrade Augusto;

Orientador: José Antônio Carlos Otaviano David Morano;

Liga: Grupo de Estudos de Anatomia Aplicada à Saúde (GEAAS).

Caso Clínico de Síndrome do Intestino Irritável:

A Síndrome do Intestino Irritável (SII) é um distúrbio gastrointestinal funcional que acomete de 10 a 15% da população brasileira, representando a afecção gastrointestinal mais comum, caracterizado pela presença de sintomas gastrointestinais recorrentes e frequentes na ausência de outras anormalidades estruturais ou bioquímicas. Apesar de sua alta prevalência, os mecanismos fisiopatológicos ainda não estão muito bem esclarecidos. Nesse contexto, a proposição de modelos que expliquem essa enfermidade está relacionada, principalmente, com alterações da motilidade gastrointestinal, hipersensibilidade visceral e também estressores psicossociais.

2) Identificação do paciente e história clínica:

R. F. D., masculino, 29 anos, natural e procedente de Fortaleza, ensino superior completo, graduado em administração, gerente de uma grande empresa nacional, branco, católico, heterossexual.

3) Queixa principal:

Piora da dor.

“Estou com dor na barriga já tem sete meses. Antes, há uns quatro meses, era só um incômodo uma vez por semana, mas nos últimos três meses piorou, aparecendo umas duas ou três vezes. Também comecei a ter diarreia umas diarreias umas quatro vezes por dia, e sempre que eu vou ao banheiro, aumenta a dor”.

4) História da doença Atual (HDA):

Relata que apresenta dor abdominal recorrente há sete meses. Até quatro meses atrás, sentia desconforto abdominal uma vez por semana, mas, nos últimos três meses, chega a sentir essa dor de duas a três vezes por semana. Associado ao quadro álgico, notou aumento na frequência de evacuações, cerca de 4 vezes ao dia, e que, quando o fazia, aumentava a dor. Relata que suas fezes eram pastosas e volumosas. Afirma que a dor não está relacionada com a alimentação. Nega outras alterações. Dor não irradia para nenhuma outra parte do corpo.

5) História de vida:

Paciente relata ter nascido de parto normal, desenvolvimento neuropsicomotor adequado para a idade. Afirma viroses comuns da infância (varicela, caxumba, rubéola). Nega hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus do tipo 2, dislipidemia ou outras comorbidades. Relata não haver histórico de cânceres, doenças autoimunes ou outras patologias em sua família. Nega histórico de internação hospitalar, acidentes, cirurgias ou transfusões sanguíneas. Previamente hígido antes do quadro relatado anteriormente. É casado e mora com esposa e filhos uma casa na região sul de Fortaleza. Possui boa relação com família. Alega que praticar atividade física é a sua forma de lazer. Gerente de uma grande empresa nacional.

6) Exame físico:

Ao exame físico abdominal, pôde-se notar abdômen flácido, plano, simétrico. Murmúrios vesiculares presentes, universais e sem alterações. Além da dor difusa, não foi identificada nenhuma alteração digna de nota.

7) Exames complementares:

Não há necessidade da realização de exames para diagnosticar a Síndrome do Intestino Irritável (SII). A execução de uma de uma história clínica e de um exame físico minuciosos, bem como o uso também os critérios de Roma, recentemente atualizados em 2016 (Roma IV), o diagnóstico pode ser realizado com eficiência. Entretanto, a realização de exames complementares é de extrema importância para a exclusão de outras alternativas.

  1. O Exame de Proteína C Reativa (PCR) é ideal para observar a presença de inflamações. A PCR é um excelente marcador inflamatório devido a sua curta meia vida de apenas 19h e pode corroborar ou descartar a presença de Doença Inflamatória Intestinal. O resultado do exame pode ser influenciado por fatores como obesidade ou tratamentos medicamentosos.
  2. Um Hemograma Completo é comumente solicitado na prática a fim de observar a presença de situações como anemia ou leucocitose, que sugeririam outro diagnóstico.
  3. A Avaliação da Calprotectina Fecal também é um bom indicador de inflamação uma vez que sua quantidade nas fezes é influenciada pela migração de neutrófilos da parede intestinal para a Mucosa.
  4. A realização de um Exame Sorológico para doença celíaca, alinhado a uma Biópsia Duodenal, padrão-ouro para diagnóstico dessa condição,em pacientes com sintomas de Síndrome do Intestino Irritável é recomendada por metanálises recentes que revelam uma alta quantidade de pacientes celíacos confirmados através de biópsia em indivíduos como o subtipo sindrômico do intestino irritável.

OBS: A Colonoscopia também pode ser solicitada para analisar a possibilidade de um câncer de cólon, principalmente em casos em que houver perda de sangue pelas fezes. Entretanto, em uma pesquisa realizada com 466 pacientes com sintomas da Síndrome do Intestino Irritável submetidos a colonoscopia, nenhum apresentou câncer colorretal.

8) Resultados dos Exames:

  1. Exame de Proteína C-Reativa:  0,3 mg/dL (normal)
  2. Hemograma Completo: Sem alterações dignas de destaque
  3. Calprotectina Fecal: 50 mcg/g (normal)
  4. Sorologia e Biópsia para Doença Celíaca: Sem alterações

9) Pontos de discussão:

  • O que é a Síndrome do Intestino Irritável?
  • Qual é a fisiopatologia desta condição?
  • Como se dá o diagnóstico dessa síndrome?
  • Qual a relevância da realização de exames complementares?
  • Qual a conduta terapêutica mais apropriada?
  • Quais são os principais diagnósticos diferenciais?

10) Diagnóstico principal:

As principais suspeitas do caso são: Doença Celíaca, Síndrome do Intestino Irritável e Doença Inflamatória Intestinal. Essas hipóteses diagnósticas estão relacionadas, principalmente, aos sintomas gastrointestinais do paciente, como a diarreia e a dor abdominal.

11) Discussão do caso de Síndrome do Intestino Irritável:

O diagnóstico mais provável é de Síndrome do Intestino Irritável (SII), que apresenta mecanismos fisiopatológicos ainda não são bem conhecidos. Entretanto, acredita-se que essa condição pode estar relacionada a estressores psicossociais, hipersensibilidade visceral e alterações na motilidade do sistema gastrointestinal. Além disso, uma correlação entre o sistema imune da mucosa com bactérias intestinais e a ingestão de alimentos tem sido observada nessa condição. Esse diagnóstico é condizente com os sintomas do paciente, como dor abdominal e diarreia e condiz com os critérios de Roma IV para esse diagnóstico sindrômico, que são a presença de dor abdominal no mínimo uma vez por semana nos últimos três meses, com os sintomas estando presentes por, pelo menos, seis meses antes do diagnóstico, acompanhado de pelo menos dois sintomas dentre defecação com melhora ou piora da dor, mudança na frequência da defecação e alteração no formato das fezes, bem como a ausência de sinais de alarme, como histórico familiar que sugira outras patologias, perda de sangue pelas fezes, massas abdominais palpáveis ou, ainda,  perda não intencional de peso.

Sob esse viés, o subtipo de SII do paciente se enquadraria na SII com manifestação diarreica, caracterizada por mais de 25% das fezes classificadas em 6 ou 7 na Escala Bistrol e menos de 25% como 1 ou 2. Em contrapartida, uma SII com manifestação constipatória seria descrita como mais de 25% das fezes classificadas como 1 ou 2 na escala Bistrol e menos de 25% rotuladas como 6 ou 7. Entretanto, esses sintomas comuns em pacientes com SII são inespecíficos e presentes em outras patologias, o que torna a realização de exames complementares extremamente importante para avaliar a presença de inflamação, descartando ou corroborando para uma Doença Inflamatória Intestinal, e uma sorologia associada à biópsia para analisar a possibilidade da Doença Celíaca.

Para a realização da terapêutica adequada, a análise de como a doença afeta a vida do paciente é de extrema importância, bem como a análise do tipo de Síndrome do Intestino Irritável acomete aquela pessoa.

A mudança de estilo de vida com enfoque numa readaptação alimentar tem sido indicada. Uma dieta com baixa ingestão de oligossacarídeos, monossacarídeos, dissacarídeos e poliols, geralmente presentes em alimentos como doces artificiais, legumes, alimentos ricos em lactose é recomendada devido à possível exacerbação dos sintomas, como a aumento de gases e distensão abdominal, devido suas propriedades fermentativas e osmóticas. Há pouca evidência no que se refere a benefícios trazidos pela prática de exercícios físicos em pacientes com esse quadro clínico. Aumentar a ingestão de fibras é um tratamento comum, mas pode trazer pioras às dores na SII constipatória, principalmente no que se refere à ingestão de fibras insolúveis. Fibras solúveis, entretanto, têm demonstrado efeitos benéficos ao paciente. No que se refere à terapêutica medicamentosa, como medicamentos de primeira linha, são utilizados antiespasmódicos como a diciclomina, hiosciamina e, ainda óleo essencial de hortelã-pimenta (peppermintoil), que têm demonstrado boas respostas no alívio da dor abdominal. Como medicamentos de segunda linha, para o subtipo com constipação, recomenda-se o uso de tratamentos voltados para essa sintomatologia, como a Lubiprostona, que acelera o trânsito gastrointestinal através de sua ação nos enterócitos gerando aumento da secreção de fluidos.  Quanto à manifestação diarreica da síndrome, recomenda-se Loperamidapré-prandial para reduzir os sintomas diarreicos. O uso de inibidores seletivos da recaptação de serotonina também pode ser utilizado como ferramenta terapêutica, uma vez que são capazes de reduzir o trânsito intestinal.

12) Existem outras hipóteses diagnósticas e diagnósticos diferenciais?

a) Suspeita 1 – Doença Inflamatória Intestinal

A Doença Inflamatória Intestinal (DII) é uma afecção gastrintestinal que compreende a Doença de Crohn, a colite indeterminada e a colite ulcerativa. A fisiopatologia dessa doença se dá por meio de mecanismos ainda não muito bem esclarecidos. Entretanto, estudos realizados com gêmeos revelaram uma correlação genética no que se refere a essa enfermidade. No histórico familiar, observa-se a presença de histórico de doença autoimune.

O quadro clínico da DII pode variar bastante dependendo da via de resposta imunológica do acometido. Na Doença de Crohn, por exemplo, observa-se, principalmente, a via TH1, com a secreção de citocinas pró-inflamatórias que iniciam um ciclo auto-perpetuante de inflamação, enquanto na Colite Ulcerativa, a via TH2 é ativada gerando uma ativação mais eficiente de células B e células Natural Killer.

Na Doença de Crohn, a dor abdominal importante, geralmente relatada em cólica, associada a diarreia aquosa ou constipação e perda de peso são sintomas comum.  Sintomas sistêmicos, ainda, são observados nessa condição devido a uma má absorção intestinal e a uma resposta inflamatória cíclica. Pode ou não haver a presença de sangue com fezes. Na Colite Ulcerativa, os sintomas são menos heterogêneos que na doença de Crohn. Observa-se diarreia causada pelo rápido trânsito intestinal pelo cólon inflamado, geralmente pós-prandial, e também a presença ou não de sangue com fezes.

Sob esse viés, apesar da ausência de histórico familiar de doenças autoimunes, os sintomas de dor abdominal importante associada à diarreia relatados pelo paciente estão presentes na Doença de Crohn e na Colite Ulcerativa, o que torna o diagnóstico de Doença Inflamatória Intestinal uma possibilidade que deve ser discutida através da realização de exames complementares.

b) Suspeita 2 – Doença Celíaca

A doença celíaca é uma doença autoimune de mecanismos fisiopatológicos que envolvem fatores genéticos relacionados ao antígeno leucocitário humano, a transglutaminase tecidual e o gatilho ambiental (ingestão de glúten). É uma das doenças autoimunes mais comuns com sintomas que podem variar bastante entre os pacientes. Adultos podem relatar inchaço, diarreia, constipação, dores abdominais e perda de peso.  Anemia microcítica também pode ser detectada em até 40% dos casos.   Essa condição pode ser diagnosticada a partir de um teste sorológico alinhado à uma biópsia duodenal.

Sob essa perspectiva, apesar de negar piora das dores com a alimentação e histórico familiar de doença autoimune. o paciente apresentava o sintoma de diarréia, dores abdominais e inchaço, que são condizentes com a doença celíaca.

13) Tratamentos indicados:

Os tratamentos indicados para o paciente em questão são a reeducação alimentar, com uma dieta baixa em oligossacarídeos, monossacarídeos, dissacarídeos e poliols e rica em fibras solúveis, o uso de antiespasmódicos para o alívio da dor bem como a terapêutica medicamentosa com antidiarreicos como a Loperamida para reduzir os sintomas.

14) Diagnósticos diferenciais principais:

  1. Doença Inflamatória Intestinal
  2. Doença Celíaca

15) Objetivos de Aprendizados/Competências:

  • Compreender os pontos mais importantes no que se refere ao diagnóstico da Síndrome do Intestino Irritável;
  •  Analisar a solicitação de exames complementares;
  • Conhecer os principais diagnósticos diferenciais;
  • Comparar as variáveis terapêuticas para a síndrome.

16) Pontos Importantes:

  • Paciente se enquadra dentro dos critérios de Roma IV para o diagnóstico de Síndrome do Intestino Irritável
  • Ausência de doenças autoimunes no histórico familiar
  • Exames complementares indicando a ausência de outras doenças.

17) Conclusão do caso de Síndrome do Intestino Irritável:

O diagnóstico foi de Síndrome do Intestino Irritável. O paciente foi tratado com uma reeducação alimentar voltada para uma dieta com baixa ingestão de alimentos fermentados e 2mg do antidiarreico Loperamida duas vezes ao dia obtendo melhora na sua qualidade de vida.