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Ivermectina, Azitromicina e Hidroxicloroquina. O “kit” defendido em rede nacional por membros do poder executivo como uma solução a COVID-19. Será que é realmente a luz no fim do túnel para a pandemia?
A ivermectina é um agente antiparasitário de amplo espectro aprovado pela FDA (Food and Drug Administration), uma agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, que nos últimos anos, junto com outros grupos, demonstrou-se ter atividade antiviral contra uma ampla gama de vírus in vitro. Originalmente, a substância foi identificada como um inibidor da interação entre a proteína integrase (IN) do vírus da imunodeficiência humana-1 (HIV-1) e o heterodímero importina (IMP) α/β1, responsável pela importação nuclear de IN.
Estudos de 2005 sobre proteínas SARS-CoV revelaram um papel potencial para IMPα/β1 durante a infecção. Com essa probabilidade pré-teste estabelecida, em um estudo publicado em abril de 2020, infectou-se células com SARS-CoV-2 isolado, seguido pela adição de 5 μM de ivermectina. O sobrenadante foi coletado nos dias 0-3 e analisado por RT-PCR para a replicação do RNA SARS-CoV-2. Às 24 h, houve uma redução de 93% no RNA viral presente no sobrenadante de amostras tratadas com ivermectina, em comparação com o veículo comparativo. Da mesma forma, uma redução de 99,8% no RNA viral associado a células foi observada com o tratamento com ivermectina. Além disso, nenhuma toxicidade da ivermectina foi observada em qualquer um dos pontos de tempo testados, nos poços de amostra ou em paralelo testado em amostras de drogas sozinhas.
Com os resultados promissores desses e de outros testes in vitro, é necessário partir para os ensaios clínicos, na tentativa de confirmar ou refutar a hipótese. No entanto, não existe nenhum estudo desse tipo com resultados publicados nas principais plataformas de registro de ensaios clínicos do mundo que comprove a eficácia da ivermectina contra a COVID-19.
A azitromicina é um antibiótico de amplo espectro usado, principalmente, para o tratamento de infecções bacterianas respiratórias, entéricas e geniturinárias. Numerosas investigações relataram alguma atividade antiviral in vitro de azitromicina contra patógenos, contudo, esse efeito antiviral não é direto e tem mostrado resultados controversos em ensaios clínicos.
Mesmo com essas evidências pré-teste conflituosas, um estudo chamou a atenção do mundo: um ensaio clínico não randomizado de braço único em Marselha, França, utilizando apenas 36 pacientes, sugeriu que a hidroxicloroquina sozinha ou em combinação com azitromicina reduziu a carga viral em pacientes com a COVID-19. Nesse estudo, a azitromicina foi adicionada para prevenir a superinfecção bacteriana em um subconjunto de pacientes, enquanto os pacientes não tratados de outro centro e aqueles que recusaram o tratamento serviram como controles incomparáveis. No dia 6, 100% dos pacientes tratados com azitromicina e hidroxiclororquina tiveram RT-PCR negativa para SARS‐CoV‐2, em comparação com 57,1% dos pacientes tratados apenas com hidroxiclolorquina e 12,5% dos controles.
Posteriormente, dois grandes estudos sobre a eficácia da combinação de azitromicina e hidroxicloroquina foram publicados. Um estudo de coorte multicêntrico retrospectivo em 1438 pacientes hospitalizados com COVID-19, 735 dos quais receberam hidroxicloroquina mais azitromicina como tratamento para COVID-19. Comparando a mortalidade hospitalar de pacientes que receberam a combinação com a daqueles que receberam hidroxicloroquina sozinha, azitromicina sozinha ou nenhum tratamento, nenhuma diferença significativa foi observada entre os quatro grupos. No outro estudo, os autores compararam a mortalidade hospitalar de pacientes tratados com a combinação de derivados de macrolídeo (classe farmacológica na qual a azitromicina está inclusa) com a de pacientes que não receberam tratamento para COVID-19, eles descobriram que as combinações estavam associadas a um risco aumentado de mortalidade.
Hidroxicloroquina, exaltado pelo presidente do Brasil e refutado pela ciência
Os medicamentos antimaláricos, como a cloroquina e a hidroxicloroquina, estão no mercado há mais de um século. Esses medicamentos têm sido usados não só para a malária, mas também para várias doenças reumáticas, devido às suas propriedades anti-inflamatórias, acessibilidade e ao fato de apresentarem um bom perfil de segurança.
O papel das citocinas inflamatórias na doença viral não é bem compreendido, no entanto, inúmeras hipóteses têm sido propostas para descrever a resposta inflamatória viral. Muitos estudos confirmaram o aumento dos níveis de IL-6 e TNF-alfa em infecções virais, como hepatite Vírus C, HIV, vírus da hepatite B, vírus da gripe, vírus chikungunya e vírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV). Apesar desse fato, o efeito da hidroxicloroquina e cloroquina na replicação viral vai além da inibição das citocinas. Esses medicamentos são bases fracas que podem afetar as vesículas ácidas e inibir várias enzimas. Essa característica permite inibir a entrada do vírus na célula quando a endocitose é dependente do pH.
Devido às semelhanças do SARS-CoV-2 com o SARS-CoV, vários pesquisadores propuseram o uso de hidroxicloroquina e cloroquina no novo vírus. Em um dos estudos, verificou-se que a cloroquina tinha uma concentração eficaz a 50% de EC50 (representa a concentração do composto para qual 50% do efeito é observado) = 1,13 µM, uma concentração citotóxica a 50% de CC50> 100 µM e uma concentração eficaz a 90% de EC90 (representa a concentração do composto para qual 90% do efeito é observado) de 6,90 µM. Com esse e outros estudos, foi concluído que a hidroxicloroquina é mais eficaz in vitro do que a cloroquina para profilaxia e tratamento.
Os resultados promissores dos experimentos in vitro levaram à criação de vários ensaios clínicos para investigar mais o efeito da cloroquina sobre o COVID-19. Atualmente, existem dois ensaios com dados disponíveis. Em um dos estudos, já comentado nesse texto anteriormente, 20 pacientes foram tratados com hidroxicloroquina, e, comparou-se os resultados com 16 controles na França. Entretanto, a amostra é muito reduzida para se obter alguma conclusão. Outro estudo demonstrou a superioridade da cloroquina sobre o tratamento de controle em mais de 100 pacientes em relação à inibição da exacerbação da pneumonia, melhora nos achados de imagem pulmonar, promoção de conversão negativa para vírus e redução do curso da doença em mais de 10 hospitais na China. Nesse caso, vale ressaltar, que os autores concluem a possibilidade da hidroxicloroquina ter efeito de melhora sobre a pneumonia, quando associada a COVID-19, além disso, não realizaram o estudo e não possuem dados de ação direta sobre o SARS-CoV-2. Ainda nesse estudo, os autores reconhecem a reduzida amostra e a análise incompleta de dados, pedindo consideração em meio ao estado de calamidade pública, apesar de não haver conclusões concisas sobre os achados.
O que podemos concluir?
Como dissertado ao longo deste texto, não existem evidências científicas comprovando a eficácia de nenhum dos fármacos apresentados contra a COVID-19, nem de sua ação direta sobre o vírus SARS-CoV-2. O máximo que se conclui são probabilidades pré-teste para o desenvolvimento de estudos, estando muitos em andamento. Nesse sentido, não é recomendado por nenhuma autoridade sanitária, de saúde ou sociedade científica o uso desses medicamentos contra a COVID-19. Assim, é de irresponsabilidade de qualquer entidade pública ou de saúde incitar a sua utilização de forma indiscriminada.
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Referências:
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