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Manifestações neurológicas da COVID-19 | Colunistas

Manifestações neurológicas da COVID-19 | Colunistas

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­­Um dos vários tipos de vírus presentes na família Coronaviridae (vírus RNA e causadores de infecções respiratórias) foi descrito pela primeira vez em 1965. Em dezembro de 2019, na província de Hubei na China, após surtos de pneumonia sem uma origem etiológica bem definida, foi identificado um 7º vírus da família Coronaviridae, denominado SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), que levou ao surgimento da doença COVID-19. Assim como o MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e o SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), o SARS-CoV-2 adquiriu, através de mutações, a capacidade de infectar populações humanas, mas em uma escala superior à dos dois anteriores. 

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou esta situação atual como uma emergência de saúde pública de preocupação global e, posteriormente, como uma pandemia. O SARS-CoV-2 apresenta alta infectividade (partículas virais oriundas de espirro ou tosse podem sobreviver por 14 a 16 horas no ar) e um amplo espectro de manifestações clínicas. Pessoas infectadas pelo vírus podem apresentar-se assintomáticas, com quadros leves e manifestações clínicas mais comuns, como tosse seca, febre, dispneia, expectoração, mialgia, astenia, cefaleia ou apresentar manifestações mais graves que podem levar à síndrome do desconforto respiratório agudo, lesão ou insuficiência cardíaca aguda, lesão renal aguda, sepse, coagulação intravascular disseminada e distúrbios metabólicos, por exemplo, podendo atingir outros órgãos, como intestino delgado, fígado, estômago e mesmo levar à morte. Para além das manifestações mais comuns da doença (tosse seca, febre e dispneia), alguns estudos passaram a relatar manifestações neurológicas com implicações no sistema nervoso central (SNC) e sistema nervoso periférico (SNP). 

Provável mecanismo de invasão do sistema nervoso pelo Sars-CoV-2 

Mesmo não havendo estudos que de fato comprovem esses mecanismos de invasão, dada a semelhança do SARS-CoV-2 com SARS e o MERS e considerando seu processo mutacional, é esperado que o comportamento dele seja muito semelhante ao destes últimos. 

Os vírus presentes na família Coronaviridae possuem 4 proteínas, denominadas proteína spike, proteína de envelope, proteína de membrana e proteína do nucleocapsídeo. Essas proteínas permitem o mecanismo de fixação, fusão e entrada dos vírus no ambiente celular do hospedeiro. O tecido epitelial presente no sistema respiratório é rico em uma enzima chamada enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2), a qual representa um receptor alvo do vírus para ligação à célula, onde completará seu ciclo de reprodução. No entanto, o receptor ECA2 não é encontrado apenas no epitélio respiratório e se expressa também em células do sistema nervoso, sendo elas as células da glia, responsáveis por proteger e nutrir neurônios, e os próprios neurônios. 

O potencial neuroinvasivo do SARS-Cov-2 não tem seu mecanismo ou mecanismos de invasão ao SNC bem elucidado, mas alguns estudos buscam entender esse processo. Algumas das hipóteses estudadas diferenciam esses em uma entrada direta e outra indireta. Analisa-se a invasão das seguintes formas: por via intranasal através do nervo olfatório ou por outros mecanismos independentes do transporte axonal; através da circulação sanguínea geral e, posteriormente, invasão da circulação cerebral, considerando que o fluxo sanguíneo cerebral mais lento favorece contato entre as proteínas do SARS-CoV-2 com a ECA2; por meio da indução de uma resposta imunológica exacerbada constituindo a chamada “tempestade de citocinas” que pode levar a um dano endotelial, CIVD (coagulação intravascular disseminada) levando a danos cerebrais indiretos; invasão de nervos periféricos e migração através da placa cribiforme, perto do bulbo olfatório, ganhando o SNC. Além disso, um recente estudo brasileiro demonstrou que o vírus é capaz de infectar e se replicar nos astrócitos.

Manifestações no sistema nervoso central e sistema nervoso periférico 

Um estudo realizado por Mao et al. (2020) e publicado na JAMA Neurology em junho de 2020 analisou 214 pacientes na cidade de Wuhan na China, demonstrando que 36,4% destes pacientes apresentaram manifestações neurológicas que variaram entre o sistema nervoso central, sistema nervoso periférico e os músculos esqueléticos, tendo os pacientes com quadros mais graves uma maior chance de desenvolver esses sintomas.

Outro estudo realizado por Wang et al. (2020) demonstrou que as principais alterações neurológicas na COVID-19 são os distúrbios gustativos e olfativos, sendo estas manifestações dependentes de fatores como idade e sexo dos pacientes. Como o epitélio oral e nasal são repletos de receptores tipo ECA2, suspeita-se que a relação entre o vírus e essa enzima cause um desequilíbrio em sua função. Lechien et al. (2020) evidencia, em um estudo multicêntrico, que alterações olfatórias ocorrem em 85,6% dos pacientes e as gustativas em 88,8% dos pacientes com COVID-19. A observação de anosmia/hiposmia e/ou ageusia em alguns pacientes são de grande importância para levantar suspeita da doença e alertar para um possível diagnóstico diferencial, considerando que essas manifestações se apresentam precocemente. 

Assim como as alterações gustativas e olfativas, a cefaleia também é um sintoma comum. Uma recente revisão sistemática feita por Chen et al. (2020) avaliou estudos que envolveram 16.446 pacientes, dos quais 20,1% relataram cefaleia, estando mais presente em casos não-graves da doença. Além disso, o estudo revelou que, de 2.226 pacientes presentes nos estudos avaliados, 7%, em média, relataram tontura. O comprometimento da consciência também foi observado em 5,1% dos 2.890 pacientes analisados, mais presente em pacientes graves se comparados a pacientes com quadros leves da doença. 

Para além dessas manifestações, foram observadas outras mais graves como edema cerebral, em que o paciente cursa, principalmente, com cefaleia, confusão, delírio, perda de consciência, convulsão e coma. O acidente vascular cerebral isquêmico agudo, síndrome de Guillain-Barré e mielite transversa aguda também foram relatados. 

É importante ressaltar que estes estudos evidenciam que os eventos cerebrovasculares, em sua maioria, ocorreram em pacientes mais velhos. Em relação à síndrome de Guillain-Barré, um relato feito por Toscano et al. (2020) evidenciou casos de cinco pacientes italianos que a desenvolveram após manifestação da COVID-19, tendo o intervalo de manifestação dos primeiros sintomas da síndrome coincidido com o de outras doenças infectocontagiosas.

Entretanto, todos os estudos evidenciam a necessidade de mais pesquisas que analisem o real impacto da infecção por SARS-CoV-2 como mecanismo de manifestações neurológicas, mas alertando que profissionais de saúde se atentem para esse novo cenário.

A tabela abaixo, extraída de uma publicação feita pela Academia Brasileira de Neurologia em março de 2020, resume e evidencia os principais sintomas neurológicos observados no estudo supracitado realizado por Mao et al. (2020):

Figura 1: Neurological Manifestations of Hospitalized Patients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective case series study. Mao L. e cols. (2020)

O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

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