Carreira em Medicina

Médicos podem errar? | Colunistas

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O que um campeão da NBA pode nos ensinar sobre erro médico?

Lebron Raymone James, ou King James para os fãs do esporte, é um atleta profissional de basquete que joga atualmente pelo Los Angeles Lakers na NBA e soma feitos na carreira dignos de um super-homem. Aos 35 anos, Lebron foi eleito o segundo melhor jogador da história do esporte, atrás apenas do lendário Michael Jordan.¹

Seus títulos, recordes, troféus são prova indelével de alguém que se dedica 24 horas por dia, 7 dias por semana, durante, no mínimo, os 17 anos que tem jogado na liga profissional e demonstram suas altas habilidades para entregar performance num dos jogos mais disputados, físico e mental, do mundo.

Fig.1 – LeBron James, campeão da NBA temporada 19-20 e eleito melhor jogador.

Em 2019, o atleta ultrapassou Michael Jordan em total de pontos marcados durante a carreira, tornando-se o terceiro maior pontuador da liga americana de basquete.² Tal conquista, fruto de muita dedicação e amor ao esporte, só foi possível graças ao seu percentual de arremessos convertidos – 50% dos arremessos de Lebron James são convertidos em pontos –, o que representa uma marca alcançada por pouquíssimos atletas durante a carreira profissional.³

Um atleta com as estatísticas de Lebron, que possui no currículo uma precisão de 50.4% de acertos, levam ele ao estrelato e o consagram como uma lenda no esporte. Entretanto, parafraseando a brilhante TEDTalk de Brian Goldman, você se consultaria com um médico que acerta 50.4% das vezes o diagnóstico?

É claro que devemos respeitar as devidas proporções da analogia, embora instigante e provocativa, Lebron não lida com vidas diariamente, nem deixará de salvar uma se errar o último arremesso da partida – os fãs assíduos do esporte discordam –, mas fato é que, mesmo Lebron sendo considerado um atleta lendário do basquete, ele erra e erra muitas vezes.

Lebron erra. Mesmo treinando mais que os outros, passando mais horas na academia e ficando depois do treino regular para arremessar algumas bolas a mais, ele continua errando. Ele erra porque errar, já diria o filósofo Platão, é humano e todos nós estamos suscetíveis à falha; mesmo praticando, estudando horas a fio, nós sempre estaremos sujeitos ao erro e isso é inevitável.

O erro médico não foge à regra. Por mais que nos dediquemos, de forma incansável, para que equívocos não ocorram, o médico, pasmem, também é ser-humano e está fadado a cometer erros assim como qualquer outro profissional, seja ele da área da saúde ou não.

Mas será que médicos podem ser humanos? Somos, durante a graduação em medicina, introduzidos à cultura da perfeição, na qual um médico deve, como bem pontua Brian Goldman em seu TEDTalk já mencionado aqui, ser perfeito e nunca, nunca mesmo, cometer erros.⁴

Erros no mundo médico são, para muitos, sinônimo de despreparo, negligência, falta de estudo e comprometimento com a vida humana, e não combinam com um profissional de excelência que se dedica diariamente ao exercício da medicina. Aliás, você não deve jamais cometer erros, mas se cometê-los, é melhor não comentar com os demais, sob pena de ser para sempre marcado com o ferro da ignorância.

Ainda que tabu entre os profissionais médicos, sendo desencorajados até de falar sobre o assunto, o erro não deixa de acontecer por simplesmente não falarmos mais dele. A bem da verdade, mesmo nos EUA, um país marcado pelo alto desenvolvimento em inovação na saúde, o erro médico é atribuído, segundo estudo do British Medical Journal, como a terceira maior causa de mortes.⁵

Invisível, porém igualmente letal, estima-se que o erro médico esteja associado à morte, nos EUA, de 250 mil vidas por ano. Vidas essas esquecidas em meio à vergonha de falar, de expor os equívocos, sobre um assunto tão sério para profissão.

Fig. 2 – Causas de morte mais comuns nos Estados Unidos, 2013.⁵

Engana-se quem pensa que o erro médico é discutido de forma ampla e franca com toda a equipe; na verdade, o que frequentemente ocorre são pequenos fóruns, reuniões, íntimas e privativas, para abordar o assunto da forma mais discreta e silenciosa possível. Entretanto o silêncio cobra caro e as experiências, quase sempre, morrem com seus autores e o conhecimento não é repassado.

Mas se ocorrem assim com tanta frequência por que não somos notificados sobre?

Um exemplo que ilustra bem o problema das notificações do erro médico é o da jovem garota que deu entrada no hospital com queixas inespecíficas. Após uma série de exames, ela foi submetida a procedimentos, ao que tudo indica, desnecessários, incluindo uma pericardiocentese, e liberada para casa. Alguns dias depois, a jovem deu entrada na emergência do hospital com uma parada cardiopulmonar e hemorragia intra-abdominal.

A autópsia revelou que uma agulha, inserida durante o procedimento de pericardiocentese, havia arranhado o fígado da paciente e causado um pseudoaneurisma que, posteriormente, rompeu. Assim, embora constatado o erro na investigação, a causa da morte descrita na certidão de óbito da paciente ficou simplesmente como cardiovascular, colocando na penumbra o real motivo da morte.⁵

Embora necessário, uma limitação importante do sistema de notificação é o fato de a certidão de óbito depender da atribuição da causa da morte ao Código Internacional de Doenças (CID), uma ferramenta epidemiológica, desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que nos permite monitorar a incidência e prevalência das doenças através de uma padronização universal.⁶

Contudo, padronizar nem sempre é o ideal e pode nos levar a cometer equívocos no momento de obter os dados. Erros diagnósticos, falhas de comunicação, má execução de procedimentos são, infelizmente, deixados de fora das certidões de óbitos, por não constar um CID compatível, e tornam-se um dado invisível, na maioria das vezes não mensurado.

O CID-10, uma lista de códigos relativos à classificação de doenças, é particularmente problemática em transpor a real intenção da morte para a certidão, uma vez que apenas alguns códigos dizem respeito ao erro médico, como efeitos adversos de anticoagulantes e o código para overdose.⁷

No Brasil não é diferente, sofremos com o efeito dos empecilhos na obtenção de dados condizentes com a real situação de saúde e isso é traduzido numa atenção reduzida ao tema. Um estudo realizado pelo Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS) e pelo Instituto de Pesquisa Feluma concluiu, em 2018, que a somatória das mortes por erros médicos resultaram em 54.760 óbitos, um número “pequeno” e, no mínimo, questionável frente ao exposto.⁸

Note que não há possibilidade de abordar um problema e mensurar quais são seus reais efeitos sobre o sistema de saúde se não conseguimos enxergá-lo. Somente com a quantificação do problema é que será possível criar uma cultura de aprender com os próprios erros e compartilhá-los para que os demais aprendam também.

Logo, fica evidente que dados mais fidedignos à realidade, com uma informação clara do motivo que levou à morte do paciente, são essenciais para desnudar o problema, escondido sob o véu da ignorância, e trazer maior luz à questão. 

O que os pacientes pensam sobre o erro e como lidar com os que já passaram por isso?

Sob a ótica do paciente que sofre com o erro, ainda que frustrante, é preferível, como bem afirma Miranda Worthen em seu artigo “After the Medical Error”, que o médico assuma a responsabilidade do ocorrido e garanta assistência e conforto aos familiares.⁹

Miranda, vítima de uma série de erros médicos ao longo da vida, fala sobre como a comunicação é fundamental nesse momento para gerar confiança entre as partes e não tornar algo que já é difícil em um pesadelo.

A autora é categórica ao afirmar que o erro por si só não afasta o paciente do seu médico, mas a conduta pós-erro é o que diferencia o bom profissional, que deixa o ego de lado e reconhece suas falhas, do que não é.

Um estudo publicado no Jama Oncology sobre a percepção dos pacientes com câncer que enfrentaram eventos problemáticos durante a conduta médica concluiu que os que já passaram por alguma experiência adversa são muito mais proativos com o próprio tratamento, indo atrás de uma segunda opinião, procurando entender melhor seus sintomas e, no geral, investigando mais seus diagnósticos.1­0

Eles também se tornam mais céticos quanto às condutas propostas e tendem a escolher seus médicos por características como profundo interesse em relação aos sintomas do paciente e maior lucidez sobre suas limitações de conhecimento.

Nesse contexto, segundo Miranda, credenciais não fazem diagnóstico e não basta apenas ter títulos pendurados na parede do consultório, é preciso que o médico consiga explicar ao paciente, de forma clara, porque chegou nesse diagnóstico e trabalhe junto com ele para resolução da enfermidade.⁹

Ou seja, de nada adianta chegar com respostas prontas, bem formuladas, mas inadequadas para o caso clínico em questão, pois, pacientes que já sofreram com erros médicos, tendem a ser muito mais questionadores e buscam maior empatia na hora da consulta.

Em última análise, pacientes que já sofreram com alguma conduta equivocada estão em busca de sensação de segurança, de saber que do outro lado da relação médico-paciente está alguém que se importa com seus sintomas, que investiga e busca trazer a melhor conduta e, principalmente, tenha humildade para reconhecer suas próprias limitações.

O erro como uma ferramenta do aprendizado

José Ortega y Gasset, brilhante filósofo espanhol do século XX, é certeiro ao afirmar que a maior riqueza do homem está na memória que ele carrega consigo e, a sua parcela mais importante está na lembrança dos erros, que nos permite não os cometer sempre.¹¹

O homem, afirma o filósofo, nunca é um primeiro homem: começa a existir, desde logo, sobre certa quantia de passado amontoado. Esse é o tesouro do homem, a memória, que nos possibilita acumular uma vasta experiência e nos auxilia, quando compartilhada, para que os equívocos ocorram com menos frequência.

Portanto, ainda que errar seja uma característica inerente ao ser-humano, manter-se no erro e não aprender com as experiências passadas não é. Repetimos os mesmos erros, centenas de vezes, pela simples falta de comunicação na comunidade médica, por não transmitir e compartilhar o aprendizado, mesmo que advindo de más experiências, e isso vem minando nosso sistema de saúde e mascarando uma realidade: mortes ocorrem por erro médico.

Em síntese, se quisermos evitar que mais mortes ocorram por erro médico, é necessário que estimulemos mais o diálogo e a troca de informação, bem como aprimorar os dados e reconhecer a inevitabilidade do erro. Mais do que isso, é imprescindível que alteremos a cultura da perfeição, da vergonha em cometer erros, pela cultura de aprender, não só com os próprios erros, mas com os erros dos outros profissionais também – é aí que mora a verdadeira sabedoria.

Autoria: Rafael Lobo