Anatomia de órgãos e sistemas

Modelo para doença hepática crônica em estágio final (MELD): avaliando e gerando sobrevidas | Colunistas

Modelo para doença hepática crônica em estágio final (MELD): avaliando e gerando sobrevidas | Colunistas

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            Imagine-se diante de um órgão que acabou de ser disponibilizado para transplante. Todavia, considere a existência de uma enorme fila de pacientes que anseiam por ele há meses ou até mesmo anos. Como você procederia? Quais seriam os critérios mais precisos para a indicação do paciente de maior prioridade?

            Essas perguntas desafiam as equipes e organizações de saúde do mundo inteiro, nos mais variados tipos de transplante em que a demanda é maior que a disponibilidade do órgão. Com a alocação hepática não poderia ser diferente. Há 60 anos, desde que passou a ser realizada, índices e escalas de objetividade variáveis foram criados para auxiliar essa organização. Atualmente, é corrente a utilização do modelo para doença hepática crônica de estágio final (MELD). No entanto, quais são os componentes dessa escala e como eles são analisados para a categorização dos pacientes por meio de um escore? Quais suas limitações? A resposta para essa e outras perguntas estão logo adiante.

Histórico de regulamentação

Nos Estados Unidos, há quase 60 anos, realizava-se pela primeira vez um transplante de fígado entre humanos. E, de lá para cá, essa tem sido a terapia definitiva para pacientes com insuficiência hepática aguda, doença hepática crônica de estágio final e carcinoma hepatocelular. Todavia, a baixa disponibilidade de órgãos cadavéricos foi e se mantém um entrave para a melhoria da vida dos pacientes que sofrem com a disfunção hepática severa. Portanto, urgiu-se, naquele momento, por um sistema de priorização, de maneira que se pudesse conciliar a disparidade entre a oferta e a disponibilidade desse órgão para alocação.

            Até 1997, nesse país, todos os pacientes com doença hepática de estágio final eram organizados em uma lista registrada pela Rede de Compartilhamento de Órgãos (UNOS), em cada organização local de colheita de órgãos (OPO). Além disso, o critério de categorização dos pacientes era o status de internação. Pacientes hospitalizados na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) recebiam a classificação de mais alta prioridade, seguidos dos que não estavam em UTI e, por progressão, dos pacientes ambulatoriais. Pacientes sob mesma categoria eram diferenciados pelo tempo na lista de espera, isto é, quem havia somado um maior período de tempo na espera pelo transplante era priorizado em detrimento dos demais. Assim, a variável tempo tornou-se um importante definidor das chances de sobrevivência desses pacientes. Apesar de aparentemente justa, não houve associação dessa variável à gravidade dos pacientes. Consecutivamente, muitos pacientes que evoluíram rapidamente para um estado grave não conseguiram a alocação hepática em tempo hábil para a garantia da sua sobrevivência.

Uma primeira tentativa de aperfeiçoamento

            Em 1964, Child e Turcotte formularam o primeiro sistema de classificação para a predição da sobrevivência de pacientes com cirrose complicada por hemorragia varicosa e eleitos à derivação portossistêmica cirúrgica. Esse modelo foi baseado em 3 variáveis clínicas: a) a presença de ascite; b) a presença de encefalopatia; e c) o estado nutricional; além de 2 variáveis laboratoriais: a) bilirrubina sérica; e b) albumina. Dessa análise surgiram três categorias de classificação, baseadas no risco de mortalidade para a cirurgia principal. Mais tarde, em 1973, Pugh alteraria esse sistema, adicionando a cada uma das 5 variáveis a possibilidade de serem pontuados com um valor de 1 a 3. Além do que, ele ainda substituiria o estado nutricional pelo tempo de protrombina. Assim, o índice passou a ser chamado de Child-Turcotte-Pugh (CTP).

            Não obstante, não custou muito tempo para que algumas desvantagens começassem a se sobressaltar. O fato de a ascite e a encefalopatia serem critérios subjetivos compeliram à diminuição da credibilidade e confiabilidade desse modelo. Apesar disso, o problema maior residia, ainda, sobre a utilização do tempo de internação como um critério de desempate para cada uma das categorias de classificação. Esse desafio, enfim, só pode ser resolvido no século seguinte, quando uma fórmula matemática foi capaz de solucionar o problema que já perdurava por quase 40 anos.

Adoção do modelo para doença hepática crônica em estágio final (MELD)

            O dia 27 de fevereiro de 2002 foi um marco histórico para a política de alocação hepática. O índice MELD, adotado e aprovado pela UNOS, conseguiu modificar o parâmetro de prioridade de “internação” para “gravidade”, ou seja, o paciente com maior risco de mortalidade seria o de maior prioridade para alocação. Esse sistema de classificação foi desenvolvido por um grupo de pesquisadores que intentavam predizer a chance de sobrevivência de pacientes eleitos à derivação portossistêmica cirúrgica para hemorragia varicosa e ascites refratárias. A escala se mostrou mais válida que a CTP ao revelar alta acurácia na indicação de mortalidade em pacientes hepatopatas crônicos de estágio avançado que estejam aguardando por uma cirurgia de alocação de órgãos. As vantagens sobre o modelo de predição mais antigo residem numa maior possibilidade de estratificação dos pacientes no índice MELD. A adição de creatinina sérica como uma variável na fórmula constituiu um fator importante para a obtenção de uma maior precisão por esse modelo mais recente. Além dessa, outras variáveis são tomadas em consideração por esse modelo. Cabe-se, portanto, conhecê-las separadamente.

Componentes do MELD e suas limitações

            O escore MELD é obtido por meio da utilização dos valores de bilirrubina e creatinina séricos e a razão normalizada internacional (INR), os quais são organizados na fórmula que se apresenta a seguir:

            Na prática, pondera-se que o escore limítrofe acima do qual um transplante hepático deve ser considerado é 15, com a exceção de ser entre 6 e 9 quando houver hepatocarcinoma. A partir disso, de acordo com Aiello et al. (2017), é possível construir uma tabela de sobrevida de 3 meses para cada valor obtido pelo MELD:

Fonte: Adaptado de Aiello et al. (2017)

Bilirrubina sérica

            Em pacientes com doença hepática em estágio terminal, a concentração de bilirrubina sérica é um marcador bem estabelecido da função sintética hepática, apesar de representar sua função excretora. Das três variáveis dessa escala, ela é a que tem maior importância. Todavia, a bilirrubina sérica é uma variável que pode apresentar desencadear confusões de interpretação, haja vista que ela está geralmente elevada em pacientes com insuficiência renal. A habilidade preditiva do escore MELD não se altera mediante utilização de um valor de bilirrubina total ou direta, portanto, a bilirrubina total é usada para o cálculo do escore MELD na prática clínica. Por outro lado, a fração indireta de bilirrubina é suscetível a outros processos e pode estar alterada em virtude de hemólise, transfusão sanguínea e variabilidade genética no metabolismo de bilirrubina. Excetuando-se esses fatores, a bilirrubina sérica apresenta uma relação essencialmente linear com a mortalidade de 90 dias em pacientes à espera de um transplante hepático. A figura abaixo denota essa relação proporcional.

Figura 1

Fonte: (ASRANI; KIM, 2011)

Creatinina sérica

            No que diz respeito à creatinina sérica, para o processo de alocação de órgãos, recomenda-se que ela esteja entre um mínimo de 1 mg/dL e um máximo de 4 mg/dL. É importante ressaltar que, para qualquer paciente que tenha sido submetido à diálise 2 semanas atrás, independentemente do seu valor de creatinina sérica, determina-se um valor máximo de 4 mg/dL. Tendo em vista que é comum observar algum grau de variabilidade na função renal em pacientes hepatopatas em estágio avançado, ele é um fator relevante na predição de sobrevida nesses pacientes. Como preditora de sobrevida, ela é um diferencial importante a se considerar, pois oferece vantagem em relação ao escore Child-Pugh.

            Na figura 1, pode-se entender que a creatinina sérica possui um padrão sigmoide em que se verifica um aumento de mortalidade linear dentro de uma faixa limitada de seu valor. As limitações quanto à inclusão dessa variável residem na variação de seu valor a depender do método de medição: colorimétrico ou enzimático. Em casos de bilirrubina sérica elevada, é preferível o método enzimático, haja vista que o colorimétrico pode subestimar o valor da creatinina. Além disso, a taxa de filtração glomerular verdadeira (TFG) obteve melhores resultados na avaliação do prognóstico do que ela. Essa realidade tem impulsionado a formação de um modelo multivariável que incorpora TFG e/ou sódio sérico (MELD-Na), o qual é tido como superior ao MELD tradicional. O sexo é um outro fator de variabilidade, possuindo um valor menor entre as mulheres em comparação aos homens, para o mesmo nível de função renal.

Razão normalizada internacional (INR)

            O fígado realiza uma função importante nas vias de coagulação pelo fornecimento de grande parte dos fatores de coagulação. Assim, a razão normalizada internacional (INR) e o tempo de protrombina podem refletir a coagulopatia associada à disfunção sintética em pacientes hepatopatas em estágio avançado. Nesses pacientes, o tempo de protrombina é prolongado devido à produção diminuída de fatores de coagulação. Tendo em vista as limitações que o tempo de protrombina possuía a depender do reagente e/ou técnica de medição usado pelo laboratório, desenvolveu-se o INR. Apesar disso, a sua utilização ainda esbarra na grande variabilidade desta taxa quando se utiliza amostras de plasma reagidas com diferentes protrombinas. A solução seria a incorporação de um INR específico do fígado. Todavia, essa questão enfrenta discordâncias e desafios laboratoriais para ser implementada. Não obstante, um modelo sem o INR é menos preciso, de acordo com Heuman et al. (2006). Logo, isso leva a crer que, de alguma forma, esse índice carrega consigo informações prognósticas. Reitera-se, portanto, a necessidade de uma medida mais reprodutível. Enquanto isso, ele continua a ser um indicador de sobrevida em pacientes hepáticos em estágio avançado.

Seus impactos no transplante de fígado

            No primeiro ano de implementação do escore MELD, uma redução de 12% na mortalidade de pacientes em lista de espera foi obtida. Essa tendência se perpetuou nos anos que se seguiram. Em 5 anos, esse decréscimo atingiu a marca dos 33,3%, com o tempo de espera para transplante encolhendo-se de 656 dias para 416. Além da adoção do MELD, esses valores se justificam pelo aumento de 10,4% no número de doadores. Estudos têm demonstrado também a correlação entre a pontuação obtida com esse modelo de classificação e os recursos hospitalares utilizados no transplante. Outras pesquisas, por sua vez, relatam um aumento de 55% do custo de transplantação na era pós-MELD. Apesar disso, esse incremento no custo esteve acompanhado de melhorias na razão de anos de vida ajustados por qualidade (QALY), até mesmo em pacientes com altas pontuações no MELD, os quais, geralmente, apresentam maiores taxas de mortalidade e insucesso.

            Disparidades étnicas e de gêneros foram atenuadas dentro de 3 anos de registro. Apesar disso, as mulheres ainda apresentam uma taxa de mortalidade em lista de espera 13% maior, em virtude da utilização da creatinina sérica, a qual é comumente menor em pacientes do sexo feminino, devido ao seu menor índice de massa muscular. Igualmente, era unânime a preocupação de que a implementação do sistema de alocação baseado no MELD para a seleção de pacientes em estado grave prejudicasse o resultado após o transplante. Não obstante, as estatísticas mostraram que a sobrevida do paciente e do enxerto em 1 ano se manteve constante entre as eras pré e pós-MELD, mesmo sob aumento na pontuação da escala, de 17 para 21. Além do que, os benefícios decorrentes da implementação desse escore foram evidenciados até mesmo fora dos Estados Unidos.

Novas possibilidades de aperfeiçoamento

            Modelos que propõem um refinamento e a melhoria da pontuação MELD têm surgido com o passar dos anos. Grande parte deles sugerem a inclusão de medições seriadas do escore; a adição de novas variáveis, como o sódio sérico; ou componentes de reponderação da pontuação MELD. Dentre eles, vale destacar a proposta de inclusão do sódio sérico, a qual será discutida abaixo.

Modelo MELD-Na

A utilidade da adição do sódio sérico surge diante do seu reconhecimento como um fator prognóstico importante na cirrose hepática, tendo em vista o reflexo que a ativação de sistemas neuro-humorais e de retenção hídrica exercem sobre as concentrações desse íon. Dentre as consequências da hiponatremia, incluem-se: a) disfunção neurológica; b) ascite refratária; c) síndrome hepatorrenal; e d) morte por doença hepática. Cada redução de 1 mmol/L na concentração sérica de sódio, atingindo valores entre 125 e 140 mmol/L, foi associada a um aumento de 5% na mortalidade. A influência dessa variável é tamanha que, em 23% dos pacientes, a diferença entre os escores MELD-Na e MELD foi suficiente para alterar a prioridade de alocação. Cerca de 7% das mortes em listas de espera poderiam ter sido evitadas se o modelo MELD-Na fosse o estabelecido para utilização.

Crescem as hipóteses de que haja um fator diminuidor da sobrevida em pacientes hiponatrêmicos que não esteja sendo previsto pela creatinina sérica, visto que esta é um medidor imperfeito da função renal. Como já dito anteriormente, os modelos que incluem a medida da TFG são superiores àqueles com creatinina sérica. Quando se leva em consideração a utilização da TFG, entretanto, o sódio sérico deixa de ter uma importância significativa. A despeito desses benefícios, a avaliação do sódio sérico pode apresentar limitações potenciais no que diz respeito à sua variabilidade diante da ingestão de água livre, tornando-o sujeito em potencial à manipulação intencional. Entretanto, é necessária uma ingestão excessivamente alta para alterar significativamente a classificação para alocação de órgãos. Ainda é obscura a influência da hiponatremia sobre a sobrevida pós-transplante, tomando como base a hipótese de que o processo subjacente de hiponatremia é a disfunção renal progressiva. Todavia, as principais pesquisas realizadas nos EUA mostram que a hiponatremia, seja qual for o grau, não teve impacto prejudicial sobre a sobrevida de 90 dias após a alocação. Abaixo, segue a fórmula para o cálculo de seu escore:

Conclusão

A hepatologia deve grandemente à contribuição que o escore MELD implementou sobre a avaliação com precisão da gravidade da doença hepática, do risco de mortalidade e da prioridade de alocação de órgãos em pacientes em lista de espera para transplante hepático. Considera-se que os desdobramentos de sua criação ainda se manterão evidentes por algumas décadas ou além, apesar do constante processo de refinamento e melhoria a que está submetido.

O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.


Referências

AIELLO, F. I. et al. Model for End-stage Liver Disease (MELD) score and liver transplant: benefits and concerns. AME Medical Journal, v. 2, p. 168–168, nov. 2017.

ASRANI, S. K.; KIM, W. R. Model for End-Stage Liver Disease: End of the First Decade. Clinics in Liver Disease, v. 15, n. 4, p. 685–698, nov. 2011.

HEUMAN, D. M. et al. MELD-XI: A rational approach to “sickest first” liver transplantation in cirrhotic patients requiring anticoagulant therapy. Liver Transplantation, v. 13, n. 1, p. 30–37, 2006.

MACHICAO, V. I. Model for End-Stage Liver Disease–Sodium Score. Clinics in Liver Disease, v. 21, n. 2, p. 275–287, maio 2017.