Índice
O que é o líquor?
O líquor ou líquido cerebroespinhal é um fluido aquoso e incolor que ocupa o espaço subaracnóideo e as cavidades ventriculares. A função primordial do líquor é de proteção mecânica, que atua como um travesseiro entre o sistema nervoso central e o estojo ósseo.
Durante muito tempo acreditou-se que o líquor seria formado somente pelos plexos coroides, estrutura enovelada formada por dobras de pia-máter, vasos sanguíneos e células ependimárias modificadas. Contudo, estudos mais modernos mostraram que o líquor é produzido mesmo na ausência de plexos coroides, sendo o epêndima das paredes ventriculares também responsável por sua produção.
Além disso, acreditava-se que o líquor resultaria apenas de um processo de filtração do plasma pelos plexos coroides. Entretanto, sabe-se hoje que ele é ativamente secretado pelo epitélio ependimário, sobretudo dos plexos coroides, e sua composição é determinada por mecanismos de transporte específicos.
Além de ser uma proteção mecânica, o líquor contribuiu para a manutenção de um meio químico estável no sistema ventricular, por meio de troca de componentes com os espaços intersticiais; excreta produtos tóxicos do metabolismo das células do tecido nervoso que passam aos espaços intersticiais; e é um veículo de comunicação entre diferentes áreas do SNC (por exemplo, hormônios produzidos no hipotálamo são liberados no sangue e no líquor, podendo agir sobre regiões distantes do sistema ventricular).
Onde o líquor é encontrado?
O LCS é secretado nos ventrículos cerebrais, principalmente pelos plexos coroides (redes capilares cercadas por epitélio cuboidal ou colunar) e pela superfície cerebral.
O LCS flui dos ventrículos laterais pelo forame de Monro para dentro do terceiro ventrículo. De lá, flui para o quarto ventrículo pelo aqueduto de Sylvius e, então, através do forame de Magendie-Luschka para o espaço subaracnóideo (o espaço subaracnóideo situa-se entre a aracnoide e a pia-máter, que, junto com a dura-máter, formam as três camadas de meninges que cobrem o SNC).
Dentro do espaço subaracnóideo, o LCS flui para baixo para o canal medular espinhal e também para cima em volta da convexidade do encéfalo, pois há reabsorção liquórica nas pequenas granulações aracnóideas existentes nos prolongamentos da dura-máter que acompanham as raízes dos nervos espinhais.
O LCS flui sobre o encéfalo e estende-se para dentro dos sulcos e profundidades do córtex cerebral em extensões do espaço subaracnóideo ao longo dos vasos sanguíneos, denominados espaços de Virchow-Robin.
A circulação do líquor é extremamente lenta e são ainda discutidos os fatores que a determinam. Sem dúvida, a produção do líquor em uma extremidade e a sua absorção em outra já são suficientes para causar sua movimentação. Outro fator contribuinte é a pulsação das artérias intracranianas que, a cada sístole, aumenta a pressão liquórica, possivelmente contribuindo para empurrar o líquor através das granulações aracnóideas.
O volume total de LCS é estimado em aproximadamente 140 ml. Sob condições normais, os ventrículos laterais e o terceiro ventrículo contêm cerca de 12 ml, e o espaço subaracnóideo medular aproximadamente 30 ml, medidos por tomografia computadorizada. Os restantes 100 ml estão no espaço subaracnóideo e nas cisternas principais do encéfalo (p. ex., cisterna magna, cisterna mesencefálica).

Interpretação do resultado do exame (características citológicas e físico-químicas do líquor)
- Pressão de abertura
Para se avaliar a pressão de abertura do LCR, utiliza-se a raquimanometria.
Os valores normais em pacientes em decúbito dorsal são: 6-20 cm em água.
- Cor e aspecto
O LCR normal é límpido e transparente.
Se estiver amarelo pode indicar infecção e se estiver xantocrômico pode indicar degradação de hemácias (devido a uma possível hemorragia subaracnoide, nível de proteína maior do que 150 ou hiperbilirrubinemia), contudo pode ser resultado de um acidente durante a punção. Assim, para diferenciar a cor xantocrômica patológica e a acidental, utiliza-se a espectrofotometria ou a centrifugação.
- Celularidade
O líquor é acelular, contudo podem ser encontrados até 5 leucócitos por mm3.
O predomínio de neutrófilos indica infecção bacteriana.
O predomínio de linfócitos indica infecção viral ou bacteriana evoluída/em tratamento.
O aparecimento de eosinófilos indica presença de parasitas, fungos, linfomas ou leucemia.
- Proteínas
As proteínas são constituídas em grande parte de albumina e menor parte de globulinas.
A análise de quantidade total de proteínas é utilizada para detectar doenças do sistema nervoso central associadas com o aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica ou à produção intratecal de imunoglobulinas.
Valores baixos do padrão indicam perda de fluido no SNC, já o aumento é observado em infecções, hemorragias intracranianas, esclerose múltipla, Guillain-Barré, malignidades, algumas anormalidades endócrinas, uso de alguns medicamentos e uma variedade de condições inflamatórias.
Os valores normais em pacientes em decúbito dorsal são: 23-38 mg/dl.
- Glicose (glicorraquia)
Os níveis de glicose no LCR são utilizados principalmente para diferenciar meningite bacteriana de viral.
A hipoglicorraquia no LCR é causada principalmente por alterações nos mecanismos de transporte de glicose através da barreira hematoencefálica e por sua grande utilização por parte das células encefálicas.
Meningites virais tipicamente têm glicorraquia normal.
Os valores normais em pacientes em decúbito dorsal são: ⅔ do resultado da glicemia sérica.
- Lactato
Os níveis de lactato no LCR, diferentemente dos níveis de glicose, não estão vinculados à concentração sanguínea, e sim à sua produção intratecal.
Os níveis de lactato são frequentemente utilizados para monitoramento de graves lesões na cabeça.
Com exceção da doença mitocondrial, o lactato no LCR se correlaciona inversamente com o valor da relação de glicose no LCR/soro. Um aumento do nível de lactato pode ser detectado mais cedo do que uma concentração reduzida de glicose. Por isso, para a diferenciação de meningite bacteriana de uma meningite asséptica, a concentração de lactato é um melhor indicador comparado a outros marcadores convencionais. Os valores normais em pacientes em decúbito dorsal são: 9-19 ml/dl.
- Coloração, teste e cultura
Se há suspeita de infecção, o sedimento centrifugado do líquor é corado por métodos diferentes para avaliar: bactérias (coloração de Gram), tuberculose (coloração com ácido ou imunofluorescência), Cryptococcus (tinta da índia), entre outros.
Quais são as indicações?
Administração de anestesia raquidiana e epidural.
Diagnóstico de doenças infecciosas: meningite, encefalite, mielites.
Diagnóstico de doenças inflamatórias: esclerose múltipla, Guillain-Barré.
Diagnóstico de doenças oncológicas como leucemia.
Diagnóstico de doenças metabólicas.
Infusão de quimioterápicos e antibióticos.
Quais são as contraindicações?
Absolutas:
- Infecção no local da punção;
- Exame de imagem mostrando hidrocefalia obstrutiva, edema cerebral difuso ou herniação cerebral ou cerebelar.
Relativas (individualizar a avaliação):
- Sinais de hipertensão intracraniana;
- Sepse ou hipotensão;
- Distúrbio de coagulação (plaquetas abaixo de 50.000 ou INR > 1,5);
- Sinais neurológicos focais;
- Paciente comatoso;
- Crises convulsivas;
- Cirurgia lombar prévia com colocação de próteses/pinos.
Conclusão
O número de indicações definidas da punção lombar diminui com o advento de melhores procedimentos de neuroimagem, incluindo tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética, mas a punção lombar urgente ainda é indicada para diagnosticar duas condições sérias: infecção do SNC (com exceção de abscesso cerebral ou processo parameníngeo) e suspeita de hemorragia subaracnóidea (HSA) em paciente com TC negativa. Sendo assim, se associados com uma boa anamnese e um bom exame físico (em casos não urgentes), podem diminuir a necessidade desse exame que é tão desconfortável e que pode gerar graves complicações para o paciente.
Autora: Melissa Amorim Martins
Instagram: @medmel_
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Referências:
Tunkel AR, Hartman BJ, Kaplan SL, Kaufman BA, Roos KL, Scheld WM, Whitley RJ. Practice guidelines for the management of bacterial meningitis. Clin. Infect. Dis. 2004 Nov 39 (9) :1267-84.
Chaudhuri A, Martinez-Martin P, Martin PM, Kennedy PG, Andrew Seaton R, Portegies P, Bojar M, Steiner I, . EFNS guideline on the management of community-acquired bacterial meningitis: report of an EFNS Task Force on acute bacterial meningitis in older children and adults. Eur. J. Neurol. 2008 Jul 15 (7) :649-59.
Oliveira, J. P. S., Mendes, N. T., Martins, Á. R. and Sanvito, W. L.
Oliveira, J., Mendes, N., Martins, Á., & Sanvito, W. (2020). Cerebrospinal fluid: history, collection techniques, indications, contraindications and complications. Jornal Brasileiro De Patologia E Medicina Laboratorial. doi: 10.5935/1676-2444.20200054
Análise dos valores de referência do líquido cefalorraquidiano – 48n.3 – Revista RBAC
Análise dos valores de referência do líquido cefalorraquidiano – 48n.3 – Revista RBAC. (2021).
http://www.rbac.org.br/artigos/analise-dos-valores-de-referencia-do-liquido-cefalorraquidiano-48n-3/
https://www.scielo.br/pdf/anp/v21n1/04.pdf
BEAR, M. F.; CONNORS, B. W.; PARADISO, M. A. Neurociências: Desvendando o sistema nervoso.
MACHADO, Angelo B. M.; Neuroanatomia funcional. 2 ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2007.
KANDEL, E.R. Princípios de Neurociências Porto Alegre Ed. MC HILL 5a. Edição 2014.