Neurologia

O essencial teórico sobre líquor e interpretação da punção lombar | Colunistas

O essencial teórico sobre líquor e interpretação da punção lombar | Colunistas

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Imagem de perfil de Mel Amorim

O que é o líquor?

O líquor ou líquido cerebroespinhal é um fluido aquoso e incolor que ocupa o espaço subaracnóideo e as cavidades ventriculares. A função primordial do líquor é de proteção mecânica, que atua como um travesseiro entre o sistema nervoso central e o estojo ósseo.

Durante muito tempo acreditou-se que o líquor seria formado somente pelos plexos coroides, estrutura enovelada formada por dobras de pia-máter, vasos sanguíneos e células ependimárias modificadas. Contudo, estudos mais modernos mostraram que o líquor é produzido mesmo na ausência de plexos coroides, sendo o epêndima das paredes ventriculares também responsável por sua produção. 

Além disso, acreditava-se que o líquor resultaria apenas de um processo de filtração do plasma pelos plexos coroides. Entretanto, sabe-se hoje que ele é ativamente secretado pelo epitélio ependimário, sobretudo dos plexos coroides, e sua composição é determinada por mecanismos de transporte específicos. 

Além de ser uma proteção mecânica, o líquor contribuiu para a manutenção de um meio químico estável no sistema ventricular, por meio de troca de componentes com os espaços intersticiais; excreta produtos tóxicos do metabolismo das células do tecido nervoso que passam aos espaços intersticiais; e é um veículo de comunicação entre diferentes áreas do SNC (por exemplo, hormônios produzidos no hipotálamo são liberados no sangue e no líquor, podendo agir sobre regiões distantes do sistema ventricular).

Onde o líquor é encontrado?

O LCS é secretado nos ventrículos cerebrais, principalmente pelos plexos coroides (redes capilares cercadas por epitélio cuboidal ou colunar) e pela superfície cerebral.

O LCS flui dos ventrículos laterais pelo forame de Monro para dentro do terceiro ventrículo. De lá, flui para o quarto ventrículo pelo aqueduto de Sylvius e, então, através do forame de Magendie-Luschka para o espaço subaracnóideo (o espaço subaracnóideo situa-se entre a aracnoide e a pia-máter, que, junto com a dura-máter, formam as três camadas de meninges que cobrem o SNC).

Dentro do espaço subaracnóideo, o LCS flui para baixo para o canal medular espinhal e também para cima em volta da convexidade do encéfalo, pois há reabsorção liquórica nas pequenas granulações aracnóideas existentes nos prolongamentos da dura-máter que acompanham as raízes dos nervos espinhais.

O LCS flui sobre o encéfalo e estende-se para dentro dos sulcos e profundidades do córtex cerebral em extensões do espaço subaracnóideo ao longo dos vasos sanguíneos, denominados espaços de Virchow-Robin. 

A circulação do líquor é extremamente lenta e são ainda discutidos os fatores que a determinam. Sem dúvida, a produção do líquor em uma extremidade e a sua absorção em outra já são suficientes para causar sua movimentação. Outro fator contribuinte é a pulsação das artérias intracranianas que, a cada sístole, aumenta a pressão liquórica, possivelmente contribuindo para empurrar o líquor através das granulações aracnóideas. 

O volume total de LCS é estimado em aproximadamente 140 ml. Sob condições normais, os ventrículos laterais e o terceiro ventrículo contêm cerca de 12 ml, e o espaço subaracnóideo medular aproximadamente 30 ml, medidos por tomografia computadorizada. Os restantes 100 ml estão no espaço subaracnóideo e nas cisternas principais do encéfalo (p. ex., cisterna magna, cisterna mesencefálica). 

Fonte: Princípios de Neurociência – Kandel (capítulo “A barreira hematoencefálica, o plexo coroide e o líquido cerebrospinal”, página 1372)

Interpretação do resultado do exame (características citológicas e físico-químicas do líquor)

  • Pressão de abertura

Para se avaliar a pressão de abertura do LCR, utiliza-se a raquimanometria.

Os valores normais em pacientes em decúbito dorsal são: 6-20 cm em água.

  • Cor e aspecto

O LCR normal é límpido e transparente.

Se estiver amarelo pode indicar infecção e se estiver xantocrômico pode indicar degradação de hemácias (devido a uma possível hemorragia subaracnoide, nível de proteína maior do que 150 ou hiperbilirrubinemia), contudo pode ser resultado de um acidente durante a punção. Assim, para diferenciar a cor xantocrômica patológica e a acidental, utiliza-se a espectrofotometria ou a centrifugação.

  • Celularidade

O líquor é acelular, contudo podem ser encontrados até 5 leucócitos por mm3.

O predomínio de neutrófilos indica infecção bacteriana.

O predomínio de linfócitos indica infecção viral ou bacteriana evoluída/em tratamento.

O aparecimento de eosinófilos indica presença de parasitas, fungos, linfomas ou leucemia.

  • Proteínas

As proteínas são constituídas em grande parte de albumina e menor parte de globulinas.

A análise de quantidade total de proteínas é utilizada para detectar doenças do sistema nervoso central associadas com o aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica ou à produção intratecal de imunoglobulinas.

Valores baixos do padrão indicam perda de fluido no SNC, já o aumento é observado em infecções, hemorragias intracranianas, esclerose múltipla, Guillain-Barré, malignidades, algumas anormalidades endócrinas, uso de alguns medicamentos e uma variedade de condições inflamatórias.

Os valores normais em pacientes em decúbito dorsal são: 23-38 mg/dl.

  • Glicose (glicorraquia)

Os níveis de glicose no LCR são utilizados principalmente para diferenciar meningite bacteriana de viral. 

A hipoglicorraquia no LCR é causada principalmente por alterações nos mecanismos de transporte de glicose através da barreira hematoencefálica e por sua grande utilização por parte das células encefálicas.

Meningites virais tipicamente têm glicorraquia normal.

Os valores normais em pacientes em decúbito dorsal são: ⅔ do resultado da glicemia sérica.

  • Lactato

Os níveis de lactato no LCR, diferentemente dos níveis de glicose, não estão vinculados à concentração sanguínea, e sim à sua produção intratecal.                                                                                                                                                  

Os níveis de lactato são frequentemente utilizados para monitoramento de graves lesões na cabeça.                                                                                                                     

Com exceção da doença mitocondrial, o lactato no LCR se correlaciona inversamente com o valor da relação de glicose no LCR/soro. Um aumento do nível de lactato pode ser detectado mais cedo do que uma concentração reduzida de glicose. Por isso, para a diferenciação de meningite bacteriana de uma meningite asséptica, a concentração de lactato é um melhor indicador comparado a outros marca­­dores convencionais. Os valores normais em pacientes em decúbito dorsal são: 9-19 ml/dl.

  • Coloração, teste e cultura

Se há suspeita de infecção, o sedimento centrifugado do líquor é corado por métodos diferentes para avaliar: bactérias (coloração de Gram), tuberculose (coloração com ácido ou imunofluorescência), Cryptococcus (tinta da índia), entre outros.

Quais são as indicações?

Administração de anestesia raquidiana e epidural.

Diagnóstico de doenças infecciosas: meningite, encefalite, mielites.

Diagnóstico de doenças inflamatórias: esclerose múltipla, Guillain-Barré.

Diagnóstico de doenças oncológicas como leucemia.

Diagnóstico de doenças metabólicas.

Infusão de quimioterápicos e antibióticos.

Quais são as contraindicações?

Absolutas: 

  1. Infecção no local da punção;
  2. Exame de imagem mostrando hidrocefalia obstrutiva, edema cerebral difuso ou herniação cerebral ou cerebelar.

Relativas (individualizar a avaliação):

  1. Sinais de hipertensão intracraniana; 
  2. Sepse ou hipotensão; 
  3. Distúrbio de coagulação (plaquetas abaixo de 50.000 ou INR > 1,5);
  4. Sinais neurológicos focais;
  5. Paciente comatoso;
  6. Crises convulsivas; 
  7. Cirurgia lombar prévia com colocação de próteses/pinos. 

Conclusão

O número de indicações definidas da punção lombar diminui com o advento de melhores procedimentos de neuroimagem, incluindo tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética, mas a punção lombar urgente ainda é indicada para diagnosticar duas condições sérias: infecção do SNC (com exceção de abscesso cerebral ou processo parameníngeo) e suspeita de hemorragia subaracnóidea (HSA) em paciente com TC negativa. Sendo assim, se associados com uma boa anamnese e um bom exame físico (em casos não urgentes), podem diminuir a necessidade desse exame que é tão desconfortável e que pode gerar graves complicações para o paciente. 

Autora: Melissa Amorim Martins

Instagram: @medmel_

O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.


Referências:

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Oliveira, J. P. S., Mendes, N. T., Martins, Á. R. and Sanvito, W. L.

Oliveira, J., Mendes, N., Martins, Á., & Sanvito, W. (2020). Cerebrospinal fluid: history, collection techniques, indications, contraindications and complications. Jornal Brasileiro De Patologia E Medicina Laboratorial. doi: 10.5935/1676-2444.20200054

https://www.ciencianews.com.br/arquivos/ACET/IMAGENS/biblioteca-digital/bioquimica-clinica/bioquimica-clinica/21-Exame-liquido.pdf

Análise dos valores de referência do líquido cefalorraquidiano – 48n.3 – Revista RBAC

Análise dos valores de referência do líquido cefalorraquidiano – 48n.3 – Revista RBAC. (2021). 

http://www.rbac.org.br/artigos/analise-dos-valores-de-referencia-do-liquido-cefalorraquidiano-48n-3/

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BEAR, M. F.; CONNORS, B. W.; PARADISO, M. A. Neurociências: Desvendando o sistema nervoso.

MACHADO, Angelo B. M.; Neuroanatomia funcional. 2 ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2007.

KANDEL, E.R. Princípios de Neurociências Porto Alegre Ed. MC HILL 5a. Edição 2014.