Carreira em Medicina

O Pensamento Cristalizado e a Liderança Médica | Colunistas

O Pensamento Cristalizado e a Liderança Médica | Colunistas

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O pensamento cristalizado ou “fixação funcional”, termo cunhado pela psicologia, é definido como um fenômeno do qual o indivíduo não consegue se desprender do modo usual com que utiliza determinado objeto ou pensamento.

Em outras palavras é a limitação mental que você encontra para solucionar determinado problema simples por não conseguir abandonar os dogmas já há muito tempo estabelecidos na sua forma de raciocinar.

A vela de Duncker

Um famoso experimento realizado pelo psicólogo Karl Duncker, em 1945, foi capaz de ilustrar as limitações do nosso pensamento para certas questões. Os pesquisados receberam uma caixa de tachinhas, uma carteira de fósforos e uma vela. A missão: prender a vela na parede e acendê-la, porém sem deixar que a cera derretida caísse no chão.

Duncker certificou-se que a parafina da vela não fosse forte o suficiente para grudá-la na parede e que as tachinhas fossem pequenas. A única maneira de conseguir realizar o desafio era utilizando a caixa onde as tachinhas estavam como castiçal.

Vela de Duncker

Embora o problema num primeiro olhar não pareça tão difícil de se solucionar, muitos dos participantes não conseguiram completá-lo, pois não estavam dispostos a “aceitar” a utilização da caixa de tachinhas como castiçal.

O famoso estudo no Jama

Um outro estudo publicado no Journal of the American Medical Association (Jama) também ilustra a temática do pensamento cristalizado, agora na área médica.

O estudo foi desenhado através da análise da mortalidade dos pacientes cardiovasculares quando aconteciam os Encontros Nacionais de Cardiologia e os médicos cardiologistas mais experientes tinham que se ausentar da cidade.

Curiosamente, observou-se que a taxa de mortalidade em trinta dias de internação dos pacientes de alto risco era um terço menor quando os médicos mais famosos estavam fora da cidade, em conferências nacionais de cardiologia por exemplo.

O estudo concluiu que o erro médico está muito associado com a tendência de formar opiniões apressadas e baseada em experiências anteriores, uma vez que o médico especialista de longa data pode subestimar sinais importantes do problema que não sejam coerentes com sua análise inicial.

Isso é um clássico exemplo de pensamento cristalizado em que o médico especialista, com amplo e profundo conhecimento na área, comete erros por não enxergar todas as nuances da situação já que o seu olhar está enviesado pelas vivências do passado.

Entretanto, o médico generalista, pouco experiente e, muitas vezes, inseguro de suas práticas, teria maior probabilidade de realizar a conduta correta no paciente por simplesmente não ignorar os aspectos menores, mas ainda assim importantes do caso clínico e ter uma visão mais holística do problema.

Mas o que isso, afinal, tem a ver com liderança médica?

Bom, é sabido que um bom líder na medicina é caracterizado pela flexibilidade do pensamento e pela habilidade de moldar-se a diversos cenários, a fim de extrair a melhor solução no menor espaço de tempo possível. A melhor solução, muitas vezes, é fruto de uma análise impessoal e distante do todo para só assim tirarmos as devidas conclusões e poder definir uma estratégia de ataque coerente com o problema.

Assim sendo, é evidente que o pensamento cristalizado se torna um grande empecilho na carreira de um bom líder no momento de apresentar soluções aos problemas mais variados e coordenar a sua equipe de forma coesa. Pois, uma vez arraigado em dogmas antigos ou desatualizados, o líder deixa seu posto de protagonista na resolução para tornar-se partícipe do problema, acrescentando mais dificuldade àquela equipe que ele lidera.

Em continuidade, um líder na área médica com a temida “fixação funcional” é uma liderança que corre “atrás do próprio rabo”, como um vira-lata, com visão limitada e fixada na dificuldade sem desenvolver os aspectos necessários para encontrar o remédio correto para aquele problema ou paciente.

E como fugir do pensamento cristalizado e começar a tomar decisões conscientes?

Mentalidade de “eterno aprendiz”

É necessário primeiro que a abordagem do problema seja sempre feita sem preconcepções, como se o tema estivesse sendo percebido pela primeira vez. Isso, claro, não significa abandonar toda sua expertise em determinada área, mas estar sempre preparado para avaliar os obstáculos sob uma ótica de principiante, atento aos aspectos mais sutis. Neste quesito, um grande líder é marcado por vasta experiência na área com enorme amplitude e profundidade de conhecimento, mas sem perder a mentalidade de “eterno aprendiz”.

Estimule o dissenso

Outro fato de extrema relevância para abandonar o pensamento cristalizado é aceitar e promover o dissenso em equipe, pois mais importante do que estar com razão sobre o tema é poder discuti-lo em conjunto e ouvir a pluralidade de opiniões.

É claro que aqui você deve avaliar muito bem o momento oportuno de estimular as discussões e promover o debate de ideias sobre determinada conduta. O ambiente de alto nível de estresse e que exige condutas programáticas e no timing certo não são propícios a esse tipo de abordagem, mas convidar sua equipe a discutir determinado caso sem colocar-se hierarquicamente superior no debate é fundamental para que todas as ideias fluam de maneira livre e a solução apareça.

Com isso, a promoção de uma discussão florida, com opiniões diversas e óticas díspares estimula a construção de respostas bem adaptadas e livre de dogmatismos para a dificuldade encontrada.

Portanto, como você mesmo observou através do estudo publicado no Jama, nem sempre os melhores especialistas da área tomam as melhores decisões e muito disso é influenciado por análises apressadas, muito baseadas em experiências anteriores e pouco olhar individualizado para os mais diversos sinais que o paciente apresenta.

Esse desenrolar de erros médicos, em sua grande maioria praticada por profissionais atuantes há bastante tempo no mercado, é prova indelével do pensamento cristalizado e suas principais afecções.

O que não só respinga na conduta prática, mas também em todo um aspecto macro da liderança médica. Assim, a promoção do dissenso e a abordagem dos problemas sob uma mentalidade de aprendiz podem ser grandes aliados na solução de problemas, muitas vezes simples, mas que estão bloqueados pelo pensamento cristalizado.

Autor: Rafael Lobo de Souza
Instagram: @rafaelloboz