O Brasil tem um dos maiores sistemas de saúde universal do mundo, conhecido como Sistema Único de Saúde (SUS), o qual é estruturado a partir de uma vasta rede de Atenção Primária em Saúde, fato que permite que o país venha alcançando diversos resultados positivos, os quais estão atingindo destaque em âmbito internacional.
Em contraponto com os resultados que vêm atingindo ao longo das 3 décadas de existência, o SUS enfrenta grandes dificuldades, principalmente por falta de gestão em saúde, resultando em desfinanciamento, provisão de profissionais e desestruturação dos serviços. Tais problemas crônicos de gestão foram escancarados diante da pandemia do novo Coronavírus e evidenciou que, mesmo com diversos resultados positivos, nosso sistema ainda é falho e necessita de aprimoramentos1.
Diante disso, é fundamental compreendermos a importância da Atenção Primária no sucesso do sistema de saúde no Brasil e compreendermos um pouco mais sobre gestão em saúde, matéria que não está presente na grande maioria das formações médicas pelo país. Dessa maneira, podemos compreender quais os impactos da pandemia no Sistema Único de Saúde.
Importância da Atenção Primária
A Atenção Primária à Saúde (APS) é o 1º nível de atenção e se caracteriza por um conjunto de ações, no âmbito individual e coletivo, abrangendo prevenção e promoção à saúde de maneira integral. Trata-se, assim, da principal porta de entrada para o SUS e toda sua rede2.
Ela se orienta por vários princípios, sendo os de maior importância para o tema discutido, os da universalidade, acessibilidade, continuidade do cuidado, equidade e resolubilidade.
Diante do que foi exposto, notamos que a Atenção Primária é fundamental para a garantia do acesso à saúde para todos, e, por ser abrangente, atua como filtro, como agente regulador do SUS e, quando bem estruturada, consegue evitar que os problemas de saúde se agravem, tendo em média uma taxa de 85% de resolução dos problemas, sem necessidade de encaminhamento para a atenção especializada.
Sua importância é ainda mais destacada quando partimos para o grupo de Doenças Crônicas não transmissíveis que, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), são uma das principais causas de mortalidade e incapacidade em todo o continente americano. Seu controle é extremamente necessário e é baseado na prevenção, diagnóstico precoce, acompanhamento e tratamento multidisciplinar, bases exercidas pela Atenção Primária1.
Desse modo, é evidente que, além do problema de saúde, tais doenças geram impacto econômico, seja no afastamento das pessoas de seus trabalhos, ou no próprio tratamento da doença em si. Sendo assim, é de extrema importância a Atenção Primária atuando em sua totalidade para não apenas garantir saúde à toda população, como também para reduzir custos.
Gestão em Saúde
A gestão em saúde vem ganhando mais relevância e espaço nos estudos, pois está cada vez mais difícil (para qualquer país) cobrir as crescentes despesas na saúde, em razão do avanço tecnológico que na saúde não diminui gastos, mas sim os ampliam, e do aumento da longevidade da população.
Os trabalhos de gestão giram em torno do gerenciamento de recursos, com a meta de atingir o melhor grau de eficiência, ou seja, os melhores resultados com os menores custos, através de planejamento da rotina, identificação de demandas, gestão logística e definição de novas estratégias.
Atualmente, com a pandemia, a má gestão dos recursos na saúde foi escancarada e mudanças nesse âmbito são necessárias. Notou-se que os gastos com saúde não são gastos que precisam de redução, mas sim que precisam ser mais eficientes e centrados nas reais necessidades.
Além disso, evidenciou-se a necessidade de melhoria nos aspectos de desenvolvimento, investimentos em pesquisa, tempo e velocidade de aprendizado, parcerias entre universidades, empresas e governo. Por fim, vale ressaltar que a criação de padrões buscando a excelência são possíveis por meio de estrutura organizacional e definição de necessidades, além de identificar e otimizar o grupo de prestadores de serviço em saúde.
Impactos da Pandemia
Apesar das medidas imediatas serem para conter a crise atual, para a recuperação a longo prazo serão necessárias mudanças que colaborem com a eficiência dos serviços de saúde, fato que foi exemplificado pela fala do diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da OMS, Dr. Michael Ryan, que foi uma das mais importantes da coletiva: “todos os países precisam olhar de perto os objetivos na resposta desta pandemia (…) é preciso focar as energias no sistema de saúde, para que ele continue trabalhando bem.”3
Sendo assim, é importante discutirmos sobre as repercussões, tanto negativas, quanto positivas, para que assim possamos compreender melhor o cenário e tirar proveito e conhecimento para melhorar o processo de saúde no país.
Impactos Negativos
Por um lado a pandemia do novo Coronavírus trouxe danos irreparáveis, como o enorme número de mortes pela doença, e, também, gerou diversos outros agravos na saúde pública. Diretamente, notamos a sobrecarga em todos os níveis de atenção do SUS devido ao grande contingente de pessoas infectadas.
Na Atenção Primária houve sobrecarga devido ao rastreio dos infectados e pacientes com sintomas leves que buscavam orientações, e nos níveis acima pelos inúmeros pacientes que tiveram seu quadro inicial agravado. Houve desabastecimento de diversos insumos, como respiradores, medicamentos necessários para entubação de pacientes, leitos e até mesmo profissionais.
Além disso, devemos mencionar que o risco de contaminação, o isolamento social e a paralização temporária de consultas eletivas em alguns momentos provocaram aumento no número de tratamentos interrompidos, prejudicaram o diagnóstico precoce de doenças preveníveis e aumentou o tempo inicial do atendimento em contextos de urgência e emergência, acarretando em mais mortes e sequelas a diversos pacientes.
Por fim, com a restrição da vida social e precarização da condição econômica individual e do país, os casos de transtornos mentais, violência doméstica, alcoolismo e agudização ou desenvolvimentos de agravos crônicos vêm crescendo cada vez mais. Tais consequências são imprevisíveis e irão necessitar de cuidados a longo prazo, gerando ainda mais gastos em um sistema que está em crise.
Impactos Positivos
Por outro lado, também trouxe impactos positivos. O SUS, por ser um sistema novo, está sendo reconhecido pela primeira vez pela sociedade como um todo, e mostrando que, apesar da grave situação vivida, se não fosse por ele, o cenário estaria muito pior, ganhando assim maior proporção e reconhecimento da população. A reputação de instituições de ensino e pesquisa, como o Butantã e Fiocruz, após os estudos com as vacinas, começaram a ser enaltecidas e valorizadas demostrando sua importância, comprovando a necessidade de investimentos em educação, pesquisa e tecnologia4.
Com o reconhecimento que essas instituições, incluindo o SUS, vem recebendo, a população busca mais informações sobre elas, dando início a um processo de entendimento dos fluxos de saúde, com a triagem sendo feita na Atenção Primária e os direcionamentos necessários sendo tomados por alguém com maior nível de compreensão sobre o funcionamento do sistema.
Desse modo, a longo prazo, poderemos tornar nosso sistema mais eficiente, evitando sobrecarga da atenção secundária e terciária com o uso inadequado de recursos de alta complexidade com casos que poderiam ter sido resolvidos no nível primário.
Além do já mencionado, soma-se o fato de novas alternativas terem sido utilizadas e terem reduzido a grave situação enfrentada, como os hospitais de campanha e a telemedicina.
Com relação ao SUS, estes hospitais podem oferecer suporte ao sistema, evitando a sobrecarga de hospitais terciários e a contaminação de pacientes internados por outras patologias. Desse modo, a criação desses hospitais não deve oferecer risco ao papel descentralizado da APS. Pelo contrário, podem oferecer suporte necessário ao sistema como um todo, servindo de referência para o manejo da doença, auxílio epidemiológico na vigilância e medidas de controle, e mais uma opção de atendimento para o paciente que necessita do cuidado especializado, focado na sua patologia e seus determinantes na pandemia5.
Em relação à telemedicina, mesmo sendo implementada recentemente, permitiu o acesso à saúde para as pessoas mesmo em localidades distantes, permitiu um maior rastreio de possíveis casos infecciosos sem expor os profissionais ao risco da contaminação e, para alguns casos específicos de condutas eletivas, reduziu a quantidade de atrasos6.
Apesar disso, há uma grande incerteza de como ela será utilizada após a pandemia, mas tem-se a certeza de que é necessário melhor aprofundar os estudos sobre sua utilidade para os serviços de saúde. Desse modo, é importante discutir seu objetivo pós-pandemia, estabelecer sua regulamentação e desenvolver métodos que permitem que ela entregue cuidados existentes e não que ela se torne uma outra área da medicina, desconectada.
Discussões Importantes
Além dos pontos evidentes mencionados acima, a pandemia trouxe impactos positivos em relação às discussões importantes levantadas, sendo, na minha visão, duas as mais importantes: desigualdade social e gestão em saúde.
A forma como o vírus tem atingido a população transpareceu a não equidade (mortalidade, acesso a testes e tratamento, etc), com os mais vulneráveis sendo atingidos com maior facilidade em todo o mundo. Essa desigualdade social fez com que a pandemia se agravasse ainda mais e a estendeu até os dias de hoje.
O que se nota é que a classe alta teve maior risco de contaminação quando se expôs a situações de risco, como viagens e participação de festas, enquanto as classes mais baixas estavam expostas diariamente, seja no transporte público, no trabalho e, em alguns casos, na própria moradia pela falta de estrutura.
“O Brasil é um país tragicamente desigual e esse é o substrato de onde devemos partir para discutir o futuro da organização dos serviços de saúde. Se não partirmos da desigualdade, não conseguiremos efetivar o objetivo do Sistema Único de Saúde e também dos prestadores privados no país”4.
No âmbito de gestão pública, começa a haver a real necessidade de conhecer o custo real que o tratamento hospitalar representa para as instituições, quais são seus determinantes, fatores econômicos locais, regionais ou internacionais, bem como oportunidades de ajuste e contenção, tornando-o mais profissional.
Finalizando, “em relação à gestão e política de saúde, a pandemia tornou visível a importância de três componentes fundamentais para qualquer construção de ações de saúde: conhecimento, liderança e confiança. Nesse sentido, para o diálogo entre prestadores públicos e privados numa forma sistêmica, o primeiro elemento é a confiança”4.
Conclusão
Podemos observar que a pandemia trouxe diversos impactos no cotidiano, sejam eles bons ou ruins. Analisando os impactos negativos, será necessário muito discernimento e eficiência para reestruturação, a qual será amparada por alguns impactos positivos, como a educação no fluxo de atendimento, valorização do SUS e aceitação social da importância das instituições de pesquisa, ensino e tecnologia. Infelizmente, as inúmeras mortes são perdas irreparáveis, mas teremos que aprender e mudar com esse cenário trágico.
Em relação aos impactos positivos, devemos saber utilizá-los e aproveitar para trazer importantes discussões como a equidade, gestão em saúde e a telemedicina. A criação de padrões que busquem a excelência será o objetivo final, mas terá que se basear em diversos aspectos, principalmente envolvendo capacitação das equipes e educação em saúde para toda a população.
Em síntese, para superarmos os impactos da pandemia no Sistema Único de Saúde precisaremos redesenhar seu funcionamento, fazendo o sistema operar com maior eficiência, sendo necessário um pensamento sistêmico, com fundamentação científica, técnica e conhecimento de múltiplas especialidades, com diversos profissionais. À guisa de conclusão, “saúde não tem preço, mas tem custo”.

Autor: Giovane Sampaio Rossi
Instagram: @giovane97
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.
Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.
Referências
- BARBOSA, Elizabeth. A pandemia e seus impactos na Atenção Primária em Saúde. Disponível em: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/a-pandemia-e-seus-impactos-na-atencao-primaria-em-saude0. Acesso em 10 de abril de 2021.
- MINISTÉRIO DA SAÚDE. O que é Atenção Primária? Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Disponível em: https://aps.saude.gov.br/smp/smpoquee. Acesso em 10 de Abril de 2021.
- VASQUES, Victor. COVID-19 AGORA É PANDEMIA, MAS O MAIOR IMPACTO É NO SISTEMA DE SAÚDE. Disponível em: https://inovasocial.com.br/inova/covid-19-pandemia-impacto-sistema-saude/. Acesso em 10 de Abril de 2021.
- VILHENA, Andréa. Impacto da pandemia sobre o SUS: aprendizado e oportunidades. CENTRO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS DA FIOCRUZ. Disponível em: https://www.cee.fiocruz.br/?q=Impacto-da-pandemia-sobre-o-SUS-aprendizado-e-oportunidades. Acesso em 10 de Abril de 2021.
- Farias LABG, Pessoa Colares M, de Almeida Barreto FK, Pamplona de Góes Cavalcanti L. O papel da atenção primária no combate ao Covid-19: impacto na saúde pública e perspectivas futuras. Rev Bras Med Fam Comunidade. 19º de maio de 2020 [citado 10º de abril de 2021];15(42):2455. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/2455. Acesso em 10 de Abril de 2021.
- ETGES, Ana Paula Beck da Silva. O Impacto da Pandemia na Gestão do Sistema de Saúde – Drops Produção PUCRS. LIVE EM YOUTUBE. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sUCoppr-VJU. Acesso em 10 de Abril de 2021.