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Reações de Hipersensibilidade: alergias | Colunistas

Reações de Hipersensibilidade: alergias | Colunistas

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O sistema imunológico garante proteção ao nosso corpo, prevenindo danos causados pela atuação de agentes patógenos. No entanto, existem situações em que esse complexo sistema pode ser também responsável por causar lesões e danos teciduais, como nas reações de hipersensibilidade.

Isso ocorre em razão de três fatores: a autoimunidade, quando as células do sistema imune atacam autoantígenos; por reações contra microrganismos, quando no decorrer da resposta imune normal ocorrem danos teciduais originados por mediadores das próprias células imunes; ou reações alérgicas. O objetivo deste artigo será explicar os mecanismos de hipersensibilidade envolvidos nas alergias, quando a resposta imune atua sobre antígenos não patogênicos, o tipo mais comum de distúrbio imune.

As alergias, reações de hipersensibilidade imediata (tipo I), são caracterizadas por alterações musculares e vasculares após contato com algum antígeno alérgeno. Consistem em uma reação imediata com sinais característicos, seguida por uma fase inflamatória de início tardio. Você verá os principais mecanismos envolvidos tanto na reação imediata quanto na reação tardia.

Células e mediadores 

Para compreender o mecanismo de desenvolvimento da reação alérgica, é importante conhecer os tipos celulares, suas funções e mediadores envolvidos no processo.

Células Th2

Estritamente relacionados à alergia, estes subtipos de linfócitos T CD4+ auxiliares secretam interleucinas (IL) e outros mediadores que promovem o controle da resposta imune, como IL-4, IL-5 e IL-13. Além de demonstrarem importante papel na reação imediata, também atuam na inflamação da fase tardia.

A interleucina 4 atua na indução da troca de isotipo das imunoglobulinas secretadas pelos linfócitos B para IgE, importantes no início da reação alérgica. Além disso, ela é responsável por aumentar a expressão de receptores VCAM-1, que se ligam a proteínas de membrana em leucócitos, contribuindo para maior migração de eosinófilos e células Th2 para o local da reação. A interleucina 5 é responsável por ativar os eosinófilos, enquanto a IL-13 aumenta a produção de muco por células epiteliais, principalmente nas vias aéreas, característica importante observada em reações de asma.  

Mastócitos e basófilos

Os mastócitos maduros são encontrados em todos os tecidos do corpo, principalmente próximo a vasos sanguíneos, nervos, pele e mucosas, locais que sofrem os maiores danos. Os basófilos são, estrutural e funcionalmente, similares aos mastócitos, entretanto correspondem a cerca de 1% dos leucócitos circulantes.

Esses leucócitos possuem receptores FcεRI de alta afinidade com a porção Fc de imunoglobulinas E. Quando o antígeno alérgeno se conecta ao IgE, os mastócitos são ativados sofrendo desgranulação, além de iniciar a produção de mediadores lipídicos e citocinas. A desgranulação consiste na liberação do conteúdo granular dos mastócitos e basófilos no meio extracelular, etapa importante no desenvolvimento da reação imediata. Por outro lado, a produção dos outros fatores exerce maior influência na reação de fase tardia.

As substâncias granulares com efeito mais importante são as aminas vasoativas, mais especificamente a histamina. Ela apresenta efeito de duração curto, porém muito potente, responsável por promover a contração das células endoteliais, aumentando a permeabilidade vascular. Estimula a síntese de prostaciclina e óxido nítrico pelas células endoteliais, causando maior vasodilatação, além de promover a contração da musculatura lisa com peristaltismo aumentado e broncoespasmos.

Outras substâncias importantes são a triptase, responsável por clivar o fibrinogênio e ativar a colagenosa resultando em dano tecidual, e a quimase, que atua como a ECA (enzima conversora de angiotensina I) e converte angiotensina I em angiotensina II, causando vasoconstrição e aumento na secreção de muco. Por último, os mediadores lipídicos mais importantes são os eicosanoides, derivados de ácido araquidônico, especialmente a prostaglandina D2, potente vasodilatador e agente quimiotático de neutrófilos, e os leucotrienos, que juntos formam a substância de reação lenta da anafilaxia, responsável pela broncoconstrição na asma.

Eosinófilos

Estes leucócitos estão presentes em tecidos periféricos, especialmente nas mucosas do trato respiratório, genitourinário e gastrointestinal. Apresentam importante papel no combate de parasitas extracelulares através da liberação de enzimas digestivas. No caso das reações alérgicas, eles são recrutados por citocinas liberadas pelas células Th2 e esboçam importante relevância na reação de fase tardia.

A interleucina 5 (IL-5) liberada pelas células Th2, como já dito, ativa os eosinófilos, fazendo com que haja liberação de grânulos citoplasmáticos. Estes contêm hidrolases lisossômicas (proteína básica principal e proteína catiônica do eosinófilo) e peroxidase, importante na produção de ácidos hipobromoso e hipocloroso. Todos estes produtos apresentam certa toxicidade para o tecido saudável, sendo responsáveis por parte do dano tecidual das reações alérgicas.

Reação imediata

Quando a pessoa entra em contato com um antígeno repetidas vezes e desenvolve sensibilidade, ao se expor novamente ao mesmo alérgeno, são desencadeadas as reações imediatas mediadas pelas células e mecanismos já explicados. O antígeno se liga ao IgE conectado aos mastócitos (principais atuantes) e basófilos e provoca uma alteração conformacional em sua membrana, o que resulta na desgranulação e produção de citocinas e mediadores lipídicos. Nessa etapa, a substância mais importante é a histamina, que, estimulando as células endoteliais a liberar óxido nítrico e prostaciclinas, potencializa seus efeitos vasodilatadores, como já dito.

A partir das alterações provocadas pela histamina, triptase e quimase, começam a surgir sinais dermatológicos de inchaço e extravasamento de líquido para os tecidos (pápula), além do aparecimento de eritemas, quando as bordas das pápulas se tornam avermelhadas, devido à ação vasodilatadora potencializada pelos mediadores citados.

Reação tardia

As manifestações clínicas inflamatórias da reação tardia começam a aparecer cerca de 2 a 4 horas após contato com o alérgeno, desaparecendo gradativamente após cerca de 24 horas.

Nessa etapa a atuação principal se dá por meio das citocinas e mediadores lipídicos de mastócitos, células T auxiliares e eosinófilos, já descritos. O aumento da adesão endotelial vascular aos leucócitos e à ação quimiotática é potente, e o local de contato com o antígeno fica permeado por essas células que liberam seus conteúdos granulares e outros mediadores, causando danos teciduais. De acordo com os locais mais comuns de entrada do antígeno no organismo, a reação alérgica apresenta diferentes manifestações clínicas, como será visto adiante.

Em alguns casos a reação tardia pode ocorrer sem que a reação imediata tenha sido marcada por sinais característicos como a pápula, como ocorre na asma. Nesse distúrbio a ação dos mastócitos e da histamina é diminuída, como pode ser percebido pela reduzida quantidade de lesões e alterações vasculares, e os sinais são mantidos por outros mediadores, como a substância de reação lenta da anafilaxia.

Fatores e causas

A susceptibilidade genética e alguns fatores ambientais, como a poluição do ar, representam papel importante no surgimento de alergia ao longo da vida. Dentre os alérgenos (passíveis de desenvolver reação alérgica) mais comuns, pode-se destacar as substâncias presentes em picadas de insetos, alimentos, fármacos, pólen, ácaros de poeira doméstica, entre outros.

Ao entrar em contato com um antígeno, o sistema imune passa por uma cadeia de reações que resultará na liberação de anticorpos de diferentes classes, como IgM e IgE. Em indivíduos atópicos, com predisposição genética para reações de hipersensibilidade, o corpo produz uma maior quantidade de imunoglobulinas E. Como visto, esses anticorpos se ligam aos mastócitos e os ativam, fazendo com que seu conteúdo granular seja liberado no meio extracelular e provoque as alterações vasculares.

Quando se tem uma maior quantidade de ativadores, maior será o número de leucócitos ativados, portanto quanto maior o número de anticorpos IgE, maior a liberação de mediadores e maior a alergia. Essa proporcionalidade pode ser constatada em indivíduos com sensibilidade a alguns alimentos ou insetos, como a abelha, onde, após contato repetido com o antígeno, uma pequena quantidade é capaz de causar uma resposta exacerbada e até choques anafiláticos.

Em indivíduos não atópicos, onde as imunoglobulinas são liberadas de forma equilibrada e não se tem excesso de IgE, a ativação de mastócitos será pequena e não desencadeará uma reação de hipersensibilidade.

Em relação aos fatores ambientais, pode-se citar a poluição atmosférica e a qualidade de vida relacionada com a cultura e os hábitos, tanto alimentares quanto sociais. Um exemplo do impacto desses fatores na imunidade é que crianças que crescem em cidades grandes e industrializadas têm maior propensão ao desenvolvimento de alergias. Enquanto as crianças do meio rural apresentam maior resistência imunológica e, portanto, menor predisposição ao desenvolvimento de reações alérgicas.

Nesse âmbito foi proposta a hipótese da higiene, que diz que crianças expostas a comensais intestinais e infecções durante as primeiras fases da vida apresentam um melhor amadurecimento do sistema imune, com maior “proteção imunológica”. Em relação aos recém-nascidos, pesquisas mostram que o aleitamento materno é importante no desenvolvimento e amadurecimento do sistema imunológico da criança, formando uma importante defesa contra patógenos.

Tipos de reação alérgica

As reações alérgicas podem ser classificadas de acordo com a localização das alterações vasculares e teciduais, sendo as mais comuns a rinite alérgica, asma brônquica, dermatite atópica (eczema) e alergias alimentares. As reações anafiláticas são menos comuns, porém perigosas, e consistem em reação imediata sistêmica, causando vasodilatação por todo o corpo com consequente queda da pressão arterial e morte em até 20 minutos.

Asma brônquica

Cerca de 70% dos casos de asma estão relacionados a reações mediadas por IgE. As reações são iniciadas a partir da ativação de mastócitos por IgE e por células Th2, levando ao recrutamento de eosinófilos e basófilos. Estes são importantes fontes de substância de reação lenta da anafilaxia, responsável pelos espasmos na musculatura lisa dos brônquios e broncoconstrição recorrente. Outra ação importante de citocinas nesse distúrbio é o aumento da secreção de muco, formando uma camada espessa na árvore brônquica e dificultando ainda mais a passagem de ar.

Rinite alérgica

Também chamada de febre do feno, é causada pela inalação do alérgeno, sendo a forma mais comum na população. A reação acontece no trato respiratório superior através de manifestações geradas por infiltração de leucócitos, principalmente eosinófilos, que resulta em secreção de muco aumentada, tosse e espirros, podendo estar acompanhada por conjuntivite alérgica (coceira nos olhos) e dermatite atópica.

Dermatite atópica

É uma reação que ocorre na pele e se apresenta como um local de pele seca com prurido intenso e vermelhidão local, mais comumente nas dobras dos braços e pernas ou no local de contato com o antígeno. O ato de coçar a lesão pode provocar lesões à barreira epitelial e favorecer a entrada de antígenos patogênicos. Geralmente vem acompanhada pela rinite alérgica ou pela asma.

Alergias alimentares

São reações que acontecem após ingestão de alérgeno com ativação de mastócitos nas mucosas e submucosas gastrointestinais. A ação de mediadores químicos resulta em edema tecidual com prurido, vômitos, aumento no peristaltismo com diarreia e alguns sintomas causados pelo inchaço orofaríngeo. Os sintomas podem ser variados dependendo de cada caso e da intensidade da resposta imune.

As principais fontes de alergias alimentares conhecidas são o amendoim e os mariscos, com ênfase para o camarão.

Conclusão

O sistema imunológico constitui importante barreira para evitar a perpetuação de infecções, mas em algumas situações ele pode se tornar o verdadeiro vilão, como nos casos das alergias. A partir de distúrbios da normalidade imunológica algumas células, como os mastócitos, basófilos, T CD4+ e eosinófilos, desencadeiam respostas imunes através de mediadores contra antígenos não patogênicos. Como visto, essas reações podem se originar devido a condições genéticas, fatores ambientais e até mesmo durante os primeiros meses de vida.

Um estudo mostrou que a cada 200 atendimentos de emergência, 1 é para tratar reações de hipersensibilidade, e que a cada 100.000 pessoas, entre 50 e 2.000 já tiveram ou ainda terão um episódio de anafilaxia. Os índices de mortalidade não são totalmente estudados devido à falta de exames post-mortem que comprovem o choque anafilático. Considerando os riscos de situações como essa, é de suma importância o conhecimento sobre os mecanismos envolvidos para que o tratamento seja eficiente e rápido.

Autora: Ana Luísa Tano Sanches

Instagram: nanu_tsc


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

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Referências

ABBAS, A. K.; LICHTMAN, A. H.; PILLAI, S. Imunologia Celular e Molecular. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2019.

HALL, J. E. Tratado de Fisiologia Médica. 13 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2017.

Epidemiologia da anafilaxia –  AAAI.

QUIRINO, K. S. et al. O IMPACTO DO ALEITAMENTO MATERNO NA MICROBIOTA DO RECÉM-NASCIDO. Mostra Interdisciplinar do curso de Enfermagem, [S.l.], jul. 2019. ISSN 2448-1203. – O IMPACTO DO ALEITAMENTO MATERNO NA MICROBIOTA DO RECÉM-NASCIDO | Quirino | Mostra Interdisciplinar do curso de Enfermagem.

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