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Sífilis, desafio reemergente | Colunistas

Sífilis, desafio reemergente | Colunistas

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Uma doença que já foi tratada com mercúrio, bismuto, sangria e finalmente penicilina, para a qual não existe resistência conhecida ainda nos dias de hoje, não deixa de ser interessante e ao mesmo tempo desafiadora a propósito de sua história e de que mesmo com a existência de um tratamento eficaz, a sífilis aparece como uma doença reemergente.

Quando soldados do Rei Carlos VIII durante a tomada de Nápoles começaram a morrer por uma estranha doença apelidada posteriormente como “Doença dos Franceses” ou o “Mal Renascentista”, surgiram as indagações que até hoje intriga aqueles que buscam a sua origem entre as diferentes teorias sobre quando e onde começou: da América a Europa em tempos de Cristovão Colombo ou vice versa?

Entre os fatos interessantes que compõem essa história está a origem do nome em 1530, quando o médico italiano Giordano Fracastorius (1478-1553) em um poema conhecido como “Syphilis sive morbus gallicus”, faz referencia ao pastor Syphilus caracterizado pelos seus prazeres hedonistas, recebendo como castigo Divino pela vida errante, a sífilis.

A mulher mais uma vez na história também foi culpada desse mal que assolava aos homens. Documentos antigos descrevem que aquelas que sofriam de “ninfomania” eram capazes de provocar este infortúnio, portanto, os homens não deveriam sentir-se culpados do resultado desse delírio lascivo.

Entre os personagens da história que contraíram a sífilis, supostamente estão Wilde, Al Capone, Goya, Mussolini, Nietzsche, entre outros.

Definição

 A sífilis é uma doença infecciosa sistêmica crônica, causada pelo Treponema pallidum, espiroqueta anaeróbia, caracterizada por seu aspecto fino e que não pode ser afetada pela coloração de GRAM nem crescer em meios de cultivos, podendo sim ser vista através de impregnação (FONTANA-TRIBONDEAU).

Fisiopatogênia

O T. pallidum ingressa através das mucosas ou lesões na pele rompendo as uniões intracelulares e se une com a fibronectina da matriz extracelular que posteriormente deixará de ser reconhecida como própria, gerando anticorpos capazes de atacar o tecido do hospedeiro infectado.

A endarterite obliterante traduz a histopatologia das lesões degenerativas e a consequente progressão da historia natural da doença, ou seja, ainda que só exista uma úlcera já se considera uma doença sistêmica pela afetação dos vasos.

Transmissão

A forma mais frequente de transmissão é pelo contato sexual, também ocorre por transfusão sanguínea, acidentes com agulhas contaminadas e através da placenta (o contágio pelo canal de parto é menos comum).  

É a segunda causa de natimortos em todo o mundo, o que coloca a sífilis congênita em uma importante problemática de saúde pública.

O período de incubação geralmente é de 21 dias dependendo do volume do inóculo (mínimo 3 dias e máximo 90 dias).

O maior risco de transmissão e contágio ocorre nos estágios iniciais da doença, reduzindo gradualmente a infecciosidade com a progessão da mesma, sendo mais transmissível na sífilis primária e secundária que contém grande quantidade do treponema nas lesões.

Apresentação Clínica

Sífilis primária (cancro duro ou protossifiloma)

Aparece uma úlcera única que muitas vezes não será percebida, principalmente pelas mulheres. De fundo limpo, indolor, com bordas delimitadas, elevadas, que se acompanha ou não de linfadenopatia.

Contém um alto número de treponemas, o que faz dela uma lesão extremamente contagiosa, e sua presença aumenta em até 3 vezes o risco de contrair HIV. Capaz de cursar com regressão espontânea mesmo que não seja iniciado tratamento, deixando imunidade de curta duração.

Sífilis secundária: A grande imitadora

Uma vez que desaparece a lesão primária, entre 3 a 6 meses e sem tratamento, surgem lesões cutâneo mucosas disseminadas (roséola sifilítica), inclusive nas palmas e plantas dos pés, que variam na sua apresentação como um rush não pruriginoso, condilomas, pápulas ou placas.

O paciente pode apresentar nesse período mal estar geral como febrícula, anorexia, alopecia, faringite, artralgia, sinovite, alterações do trato gastrointestinal e acometimento de qualquer órgão com uma apresentação atípica e florida dos sintomas confundindo o diagnóstico inicial. Como por exemplo, a hepatite sifilítica, meningite, AVC em pacientes jovens, depósitos de imunocomplexos nos rins e uveíte.

A sífilis secundaria também se cura quando tratada e como na primaria, as lesões extremamente contagiosas irão desaparecer dentro de 2 a 6 semanas para entrar na fase latente se não for diagnosticada e tratada.

Sífilis latente

O paciente entrará em um período assintomático que poderá durar vários anos. A resposta em este período é variável e individual. Alguns reverterão a sorologia cursando a doença sem manifestações, outros, porém poderão desenvolver manifestações terciárias, algo infrequente graças ao tratamento.

Sífilis terciária:

Apresentação tardia, cerca de 25 anos depois, representada por sua manifestação mais comum: gomas ou tubérculos.

Afetação do sistema cardiovascular com formação de aneurismas arteriais, artropatia de Charcot, neuro-sífilis (sintomas neuro-psiquiátricos) e a histórica e temida tabes dorsalis.

Abordagem Diagnóstica

O início da abordagem diagnóstica requer a classificação do período clínico em que se encontra o paciente, disso também depende o tratamento.

Na sífilis primária, o padrão ouro para o diagnóstico é através da microscopia de campo escuro, poucas vezes utilizado porque o diagnóstico em essa etapa é infrequente. Outra opção é pela imunofluorescência direta (raspado das lesões).

Os testes treponêmicos e não treponêmicos resultam a opção mais utilizada, e de maneira simplificada o diagnóstico é certeza quando um teste não treponêmico e outro treponêmico resultam positivos.

Testes não treponêmicos  

Detectam anticorpos anticardiolipina não específicos para os antígenos do T. pallidum.

Positivo em 1 a 3 semanas após o aparecimento do cancro duro.
Se realiza através de diluição com resposta em títulos.

Pode ser Qualitativo x Quantitativo.

  Mais utilizados no nosso meio: VDRL (Venereal disease Research Laboratory) e RPR (Rapid Plasm Reagin).
 
Útil para acompanhar ao tratamento.  
Testes  Treponêmicos  

Detectam anticorpos específicos produzidos contra os antígenos de T. pallidum.

Mais utilizados no nosso meio: FTA-Abs (Fluorescent Treponemal Antibody Absorption)

TP-PA (teste de aglutinação passiva para anticorpo Treponema pallidum)

Não serve para diferenciar uma infecção ativa de uma passada. 

Deixam cicatriz imunologica em 85% dos casos.

Eles e os testes rápidos são os primeiros a ficarem positivos.  

Interpretação do resultado

Teste TreponêmicoTeste Não TreponêmicoTeste TreponemicoRESULTADO
 Negativo para sífilis, se alta sospecha clínica: repetir teste
+Falso positivo para sífilis
++ Positivo para sífilis ou já tratada
+Falso positivo
++Sífilis primária Efeito prozona Sífilis  tratada ou antiga
Negativo para sífilis

Diagnóstico Diferencial

Herpes genital; Linfogranuloma venéreo; Cancro mole.

Abordagem Terapêutica

A indicação do tratamento é clara e objetiva, Penicilina G benzatina 2,4 milhões/UI dose única, via IM, existindo somente alteração no tempo de tratamento, uma dou três semanas, de acordo com o estagio da enfermidade, se menor de um ano, superior a este período ou tempo desconhecido.

Exceções são consideradas em casos de alergia, sendo possível as opções doxiciclina ou ainda ceftriaxona.  A desensibilização deve ser realizada nas pacientes grávidas porque essa é a única maneira de considerar que o tratamento foi realmente eficaz, evitando a toda custa um desfecho congênito.

Quando a diminuição dos títulos VDRL/ RPR é de quatro vezes, significa uma boa resposta ao tratamento, por isso é tão importante realizar acompanhamento terapêutico da resposta com testes não treponêmicos durante os primeiros 6 meses na sífilis primária/ secundária e até 24 meses se considerada latente ou em pacientes imunodreprimidos.

Conclusões

Na Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, a OMS define estratégias para eliminar as infecções de transmissão sexual. Se estima que a nível mundial ocorra todos os anos cerca de 6 milhões de novas infecções por sífilis, com uma incidência em aumento.

A carga física, emocional e social das doenças de transmissão sexual é inestimável, principalmente quando se trata da sífilis congênita. Boas práticas de saúde pública que sejam de fácil aplicação, educação, diagnóstico e tratamento precoce são as chaves para a iniciativa de melhoria da qualidade de vida.

O enigma ainda não respondido de onde surgiu a sífilis, finalmente deu lugar para uma pergunta mais importante, porque uma doença  tão bem conhecida, com tratamento eficaz, ainda é uma epidemia em ascenso?

Autora: Isabella Andrade S. Freire

Instagram: @isabellaas.f


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências Bibliográficas

http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/250253/WHO-RHR-16.09-spa.pdf;jsessionid=D1D8E32BBC9241EF462CF604CC5A5CAD?sequence=1

https://www.who.int/data/gho/data/themes/topics/topic-details/GHO/data-on-syphilis

file:///C:/Users/admin/Downloads/Dialnet-LaObraMedicaDeFranciscoDelicado-1201581.pdf

https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=325

https://www.seimc.org/contenidos/ccs/revisionestematicas/serologia/sifilis.pdf

https://www.fmed.uba.ar/sites/default/files/2019-03/SEMINARIO%207.pdf