Introdução
O Estado de Mal Epiléptico (EME) é uma emergência médica caracterizada pela presença de duas ou mais crises epilépticas sem a completa recuperação da consciência entre elas ou uma crise com duração maior que 30 minutos. No entanto, crises com duração maior que 5 minutos tem baixa probabilidade de cessarem espontaneamente e são, na prática, tratadas como estado epiléptico, considerando que crises não controladas predispõem o cérebro a crises de mais difícil controle.
Etiologias
- Má aderência ao tratamento da Epilepsia
- Retirada de droga anticonvulsivante
- Síndromes de abstinência
- Lesão estrutural / Doença cerebrovascular
- Metabólica (como hipo ou hipernatremia e hipo ou hiperglicemia)
- Toxicidade (drogas, medicamentos, álcool)
- Trauma
- Sepse
- Tumor
- Infecção do sistema nervoso central
- AVC
Fisiopatologia
A atividade epileptiforme ictal anormalmente prolongada e reentrante ocorre devido a um desequilíbrio entre os mecanismos excitatórios e inibitórios. Envolvem a iniciação de mecanismos que geram crises anormalmente prolongadas e/ou falha dos mecanismos responsáveis pela cessação da crise, levando à perpetuação. O término de uma crise epiléptica ocorre no momento em que há depleção dos neurotransmissores excitatórios e de ATP na fenda sináptica e vesículas intracelulares (reservatórios). Outros mecanismos envolvem alterações iônicas, mudança no equilíbrio acidobásico e aumento na modulação GABAérgica e liberação de neuropeptídeos.
Existe um padrão que é percebido antes do final da atividade elétrica epiléptica de aumento da sincronização temporoespacial no eletroencefalograma (EEG), o que sugere uma transição do momento ictal para o interictal. Já nos pacientes com EME, essa transição está modificada ou ausente e o que acontece é um modo cíclico e contínuo ou reentrante da atividade ictal, antes atingir o estado pós-ictal.
No início da crise, a ativação sináptica compensa o aumento da demanda metabólica excessiva, mas posteriormente ocorre esgotamento dos mecanismos compensatórios e a atividade epileptiforme prolongada gera processos inflamatórios neuronais, quebra a barreira hematoencefálica e alterações sinápticas. Além disso, ocorrem alterações na expressão dos receptores de membrana, ocasionando internalização de receptores gabaérgicos e externalização dos glutamatérgicos, inibitórios e excitatórios respectivamente, e consequentemente tornando a resposta às medicações com ação gabaérgica menos eficazes e com maior chance de refratariedade. A longo prazo, pode haver alteração no circuitos neuronais e morte neuronal, gerando sequelas.
A EME é dividida em 2 tempos:
- Tempo 1 (T1): a partir do qual as crises não irão cessar espontaneamente
- Tempo 2 (T2): momento em que pode ocorrer lesão neuronal e consequências a longo prazo
A definição de T1 e T2 é diferente para tipos distintos de crise epiléptica, sendo:
- EME convulsivo (tônico-clônico):
- T1: 5 minutos (iminente)
- T2: 30 minutos (estabelecido)
- EME focal com comprometimento de consciência
- T1: 10 minutos
- T2: > 60 minutos
- Estado de mal de ausência
- T1: 10 a 15 minutos
- T2: desconhecido
Tipos de estado de mal epiléptico
- ESTADO DE MAL EPILÉPTICO CONVULSIVO (EMEC): atividade motora intensa, com abalos/hipertonia bilateral e alteração da consciência.
- Crise tônico-clônica generalizada
- ESTADO DE MAL EPILÉPTICO NÃO CONVULSIVO (EMENC): não possui atividade motora ou é observada de maneira sutil. Pode se apresentar com alteração do comportamento e/ou cognição, como psicose, perseveração, delírios, agitação, catatonia… Além disso, pode evidenciar leve alteração do nível de consciência até coma.
- Estado de mal focal com alteração da consciência
- Ausência
- Estado de mal no coma
Classificação quanto à etiologia
Exames complementares
Ajudam na pesquisa de causas sistêmicas e neurológicas que podem estar relacionadas com o quadro atual, além de servir no monitoramento do tratamento anticonvulsivante.
Exames laboratoriais
- Hemograma, glicemia, eletrólitos
- Função renal e hepática
- Gasometria
- Dosagem de amônia → diagnóstico diferencial de causas de encefalopatia
- Rastreamento toxicológico (quando há suspeita)
- Dosagem sanguínea de antiepilépticos em uso prévio
- Outros exames conforme suspeita clínica
Exames de imagem e EEG
A TC e a RNM podem ser utilizadas para investigação da etiologia do EME, sendo a última indicada nos casos em que há sinais e sintomas focais ou achados no EEG muito localizados, além dos casos em que não foi possível definir etiologia pela TC. Alguns achados decorrentes da persistência ou recorrência das crises são: edema cerebral e apagamentos dos sulcos, perda da diferenciação córtico-subcortical, realce cortical delineando os giros e ocos de hipersinal em T2 com restrição à difusão (frequentemente encontrados no corpo caloso, regiões do lobo temporal e pulvinar do tálamo).
Eletroencefalograma
O EEG é dispensável para o atendimento de urgência e essencial na condução do quadro. Na suspeita de EMENC, deve-se realizar registro eletroencefalográfico prolongado, para maior sensibilidade de detecção das crises. Após controle do EMEC, deve-se manter monitorização com EEG por pelo menos 24 horas, com o intuito de descartar crises eletrográficas em curso ou EMENC. Em casos com persistência da alteração de consciência, recomenda-se monitorar por 48 horas. Para acompanhamento e titulação do tratamento, pode ser necessário registro mais prolongado ainda.
O exame pode evidenciar padrão ictal inequívoco, caracterizado por crises contínuas ou reentrantes ou pode denotar padrões mais complexos, não obrigatoriamente ictais. A interpretação desses padrões podem identificar maior ou menor probabilidade de que crises estejam ocorrendo e conforme a morfologia das descargas e o contexto clínico, podem ser considerados como ictais.
Estudo do líquido cefalorraquidiano (LCR)
O estudo do LCR é obrigatório em casos sem etiologia definida e é especialmente importante em casos de suspeita de etiologia imune/paraneoplásica ou infecciosa não identificada pelos outros exames. Antes da realização do exame, deve-se atentar para suas contraindicações, principalmente coagulopatia e lesão com efeito massa em sistema nervoso central.
Tratamento do estado de mal epiléptico
O objetivo do tratamento é interromper as crises epilépticas, evitar lesão neuronal permanente e consequências a longo prazo, além de solucionar a causa base.
ESTADO DE MAL EPILÉPTICOS CONVULSIVO (EMEC)
- Estabilização clínica
- Protocolo ABCD
- Monitorização, manter permeabilidade de vias aéreas e oferecer O2 e acesso venoso periférico (coleta de amostra para exames laboratoriais), posicionar o paciente em decúbito lateral, coleta de glicemia capilar, monitorar ECG
- Se suspeita de etilismo, abstinência alcoólica ou desnutrição: considerar administração de tiamina parenteral (100mg seguida de 50 ml de glicose 50%)
- Exame físico neurológico
- Se crise em curso > 5 minutos de duração iniciar tratamento de primeira linha
- Diazepam 10 mg EV (pode repetir primeira dose) OU
- Midazolam 10 mg IM (reduzir dose para 5 mg se peso de 13-40 kg; não repetir)
- Se permanecer na crise após 5 min iniciar tratamento de segunda linha com anticonvulsivantes
- Fenitoína 20 mg/kg EV diluído em SF 0,9% (a velocidade máxima de infusão é de 50mg/min e em idosos e cardiopatas deve-se realizar em 20 mg/min) – fármaco de escolha OU
- Fenobarbital 15-20 mg/kg EV (sugere-se infusão de 50 a 100 mg/min) OU
- Ácido valpróico 40 mg/kg EV diluído em 100 ml de SF 0,9%; máxima 3000 mg (sugere-se infusão de 100 mg/min ou 6 mg/kg/min)
- Retirado do mercado brasileiro em 2017
- Se a crise persistir caracteriza-se como EME refratário e deve-se seguir com sedação e intubação orotraqueal. Se o risco da anestesia, rebaixamento ou instabilidade hemodinâmica não for aceitável para o paciente repetir terapia de segunda linha com um fármaco diferente
- Midazolam 0,2 mg/kg EV (pode ser repetido em bolus) + manutenção com infusão contínua de 0,1 a 2 mg/kg/hora OU
- Propofol 2 a 3 mg/kg EV (pode ser repetido em bolus) + manutenção com infusão contínua de 4 a 10 mg/kg/hora OU
- Pentobarbital 10-15 mg/kg EV + manutenção com infusão contínua 0,5-10 mg/kg/hora
- Após controle da crise, manter mais 24 horas de coma medicamentoso antes de iniciar o desmame das drogas (iniciar redução da infusão em 25% da dose total a cada 6 horas)
- Realizar monitorização com EEG
- O ideal é manter pelo menos duas medicações em doses terapêuticas antes de iniciar o processo de desmame das drogas anestésicas
- Seguimento com neurologista, equipe médica clínica e intensivista
ESTADO DE MAL EPILÉPTICO NÃO CONVULSIVO (EMENC)
- O tratamento segue a recomendação de primeira e segunda linha do EMEC
- Evitar o uso de drogas anestésicas e sedativas se o paciente tem consciência preservada ou relativamente preservada
- Se houver persistência após primeira e segunda linha, associar outro fármaco de segunda linha
- Pode-se usar drogas por via sonda nasoenteral ou oral
- Topiramato, levetiracetam, ácido valproico, vigabatrina, clobazam e carbamazepina
- O uso dos fármacos de infusão contínua deve ser exceção
- Pacientes mais jovens, com menor risco de complicações, e quando o padrão eletrográfico contribui de forma significativa para alteração da consciência
Fatores de mau prognóstico
- Etiologia
- Idade avançada
- Maior duração do EME
- EMENC após EMEC
- Presença de comorbidades clínicas
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.
Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.
Referências
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OLIVEIRA, Clístenes Queiroz. YELLOWBOOK Fluxos e Condutas. 2. ed. Salvador: Sanar, 2019.
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OLIVEIRA, Clístenes Queiroz. Como fazer todos os diagnósticos: Um guia para Emergência e Clínica Médica. 1. ed. Salvador, BA: Sanar, 2020. 800 p.