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Toda acidose metabólica deve ser tratada com bicarbonato? | Colunistas

Toda acidose metabólica deve ser tratada com bicarbonato? | Colunistas

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Imagem de perfil de Guilherme Santa Catharina

Quantas vezes você já se deparou com uma acidemia (pH < 7.35) e pensou em administrar Bicarbonato de Sódio a fim de corrigir o distúrbio? Será que isso é válido em todas as Acidoses Metabólicas (AM)? Para discutir um pouco melhor sobre o racional desta conduta, precisamos entender como esse processo ocorre.

O que é Acidose Metabólica?

Existem diversas maneiras de se interpretar um distúrbio ácido-base (e não há superioridade de uma sobre a outra), iremos resumir aqui da maneira mais simples, aquela que aprendemos nas aulas de química do colégio, a interpretação baseada na equação de Henderson Hasselbach.

Acidose Metabólica é o acúmulo de ácidos não voláteis no plasma, seja por adição de prótons (ganho de H+) ou perda de bases (HCO3), e que laboratorialmente se manifesta com um pH < 7.35 na Gasometria (seja ela Arterial ou Venosa) às custas de uma redução na concentração plasmática de HCO3-.

Veja bem, aqui estamos deixando de lado as Acidoses secundárias aos distúrbios respiratórios, onde a redução do pH para valores inferiores a 7.35 se dá pelo excesso de CO2.

As AM podem ser divididas de acordo com o Anion Gap (ou “hiato aniônico”, em bom português) – AG aumentada e AG normal, também chamada de AM Hiperclorêmicas.

Entendendo Ânion Gap (AG)

AG nada mais é do que a diferença entre a concentração do principal cátion extracelular (Na+) e os principais ânions (Cl e HCO3).

A soma dos íons de carga negativa deve ser igual a do Sódio afim de se obter uma neutralidade elétrica (afinal de contas não somos pilhas).

Vamos utilizar valores hipotéticos:

Na+ 140 mEq/L, Cl105mEq/L e HCO325 mEq/L.
Desta forma, AG = Na – (Cl + HCO3). AG = 140 – (130). AG = 10.

O AG, ou seja, a diferença que falta para igualar essas cargas (neste caso, 10 mEq/L) é a soma dos ânions não mensuráveis (representados por Sulfato, Fosfato, Ânions orgânicos entre outros). Essa diferença deve estar entre 8 – 12 mEq/L.

Acidose Metabólica com Ânion Gap Aumentado (Acidose AG)

Um AG >12 indica o acúmulo de ácidos não-clorídricos. Ou seja, algum ácido (H+) está causando uma redução no pH e, consequentemente, na sua dissociação, gerando um ânion (¹ Cl) que irá aumentar o AG.

Diversos mnemônicos já foram criados em referência às etiologias das Acidoses AG: KUSMALE, MUDPILES e mais recentemente MUDPILL (utilizada em publicação do The Lancet de 2008).

Trata-se de uma maneira prática para lembrarmos as principais fontes desses ácidos não-clorídricos.

  • Glicóis (Etileno e Propileno)
  • Oxoproline (também chamado de Ácido Piroglutâmico)
  • L-lactato
  • D-lactato
  • Metanol
  • Aspirina
  • Renal (insuficiência)
  • Ketoacidose (cetoacidose)

A rigor, o tratamento das Acidoses AG se baseia na reversão da causa de base. Nessas situações, o problema está na produção ou ingestão excessiva desses ácidos e não na deficiência de Bicarbonato.

Seja Hemodiálise nas intoxicações e na IRA, seja ressuscitação volêmica na Acidose Lática ou mesmo Insulinoterapia, com todas suas particularidades, na Cetoacidose Diabética.

O uso de Bicarbonato de Sódio nessas situações consiste em evitar “situações ameaçadoras de vida” nas acidoses graves. Você deve lembrar que Acidose faz parte dos 5Hs e 5Ts do ACLS dentre as causas de AESP.

De maneira geral, o uso de Bicarbonato de Sódio está indicado quando pH <7.1. Há exceções, como na Cetoacidose Diabética ou na Insuficiência Renal por exemplo, mas deve-se focar em reconhecer e tratar a causa de base.

Acidose Metabólica com Ânion Gap Normal, ou Acidose Hiperclorêmica

Diferente das Acidoses AG, as Acidoses Hiperclorêmicas possuem um número limitado de causas, sendo relacionadas à incapacidade de produção de Bicarbonato pelos rins ou pelo excesso de perda (renal ou não).

Dentre as causas extra renais, estão as perdas de Bicarbonato pelo Trato Gastrointestinal, como quadros diarreicos ou fístulas pancreáticas.

Quando o paciente apresenta Doença Renal Crônica, definida por uma Taxa de Filtração Glomerular <60mL/min, pode apresentar capacidade de produção de Bicarbonato (pelo processo de Amoniogênese) insuficiente, levando ao quadro de acidemia.

Por fim, quando temos um indivíduo com função renal próxima ao normal, sem perdas pelo TGI e apresentando um Acidose Hiperclorêmica, devemos pensar nas Acidoses Tubulares Renais (ATR).

As ATR são defeitos, congênitos ou adquiridos, na capacidade do rim em manter um equilíbrio ácido-base adequado, a despeito de sua função glomerular adequada. São divididas de acordo com o local do néfron acometido:

ATR tipo I – túbulo distal
ATR tipo II – túbulo proximal
ATR tipo IV – hipoaldosteronismo

Se você conseguiu vencer o cansaço da Fisiologia Renal e me acompanhou até aqui, consegue deduzir sozinho qual a base do tratamento das Acidoses Hiperclorêmicas: reposição de Bicarbonato.

Aqui, diferente das Acidoses AG, na maioria das vezes não há um excesso de ácidos a serem tamponados ou uma causa a ser revertida.

O processo está baseado justamente na quantidade de Bicarbonato inadequada, seja por qualquer dos motivos mencionados acima.

Como prescrever Bicarbonato?

Ok, optei pelo uso do Bicarbonato. E agora, qual a dose?

Para o uso crônico, seja nos pacientes com DRC ou ATR, inicia-se com dose de 50 a 100mEq por dia, titulando de acordo com metas de pH ou de concentração plasmática de Bicarbonato (como no caso da DRC um alvo de HCO3> 22 mEq/L, por exemplo).

São disponíveis apresentações orais de Bicarbonato de Sódio comprimido 500mg (8mEq de NaHCO3) ou sachês (1 colher de café = 1g = 16mEq de NaHCO3).

Caso seja optado pelo uso na fase aguda (acidemias graves), pode se utilizar cálculos para estimar o déficit de bicarbonato. Existem diversas fórmulas assim como calculadoras em smartphones. De maneira prática utiliza-se: 0,4 x Peso x (24 – HCO3).

A formulação mais comumente disponível é o NaHCO3 8.4%, onde 1mL contém 1mEq de Na e 1mEq de HCO3. Mas lembre-se: a solução de NaHCO3 8.4% além de ser muito hipertônica, também fornece grande quantidade de Sódio (podendo causar Disnatremia).

Moral da História

O uso de Bicarbonato não é proibido, desde que você entenda para quê está prescrevendo. Corrigir o pH muitas vezes é só tratar a consequência sem intervir na causa.

Acidose Metabólica Hiperclorêmica: reponha o Bicarbonato do seu paciente. Acidose Metabólica AG aumentado: trate a causa de base, mas se for grave, reponha Bicarbonato para evitar desfechos catastróficos.

Confira o vídeo: