Carreira em Medicina

Caso clínico de Obstrução Arterial Aguda

Caso clínico de Obstrução Arterial Aguda

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Esse caso clínico foi retirado do livro 50 Casos Clínicos de Cirurgia, publicado pela Sanar.
Autores: Caroline do Valle Rotter
Orientador: Harue Santiago Kumakura e Nicole Inforsato

História clínica

C.V.R.T., 35 anos, sexo feminino, católica, casada, 2 filhos, branca, natural e procedente de São Paulo. Procurou atendimento médico por queixa de dor no membro inferior esquerdo. Paciente refere dor súbita há 10 horas seguida de parestesia, que evoluiu há alguns minutos com dificuldade de mobilização do pé.

Refere antecedente de febre reumática com fibrilação atrial crônica (FA) há 25 anos, sem anticoagulação há aproximadamente 3 meses. Suspendeu a medicação por conta própria. Nega outras comorbidades, nega trauma local.

Exame físico

• Sinais vitais: PA: 120 x 80 mmHg, FC: 110 bpm; FR: 15 ipm; SatO2: 98% em ar ambiente.

• Bom estado geral, fácies de dor, corada e hidratada, orientada em tempo e espaço.

• Cardíaco: bulhas arrítmicas, normofonéticas, em 2 tempos com sopro sistólico pancardíaco.

• Abdome: plano, flácido, indolor à palpação, sem massas palpáveis, sem visceromegalias.

• Membros inferiores: membro inferior esquerdo (MIE) com cianose não fixa na planta, frialdade até terço médio de perna, diminuição de sensibilidade em mesmo nível (térmica, tátil e dolorosa), dor à palpação do compartimento anterior da perna, força diminuída à dorsiflexão do pé. Membro inferior direito (MID) sem alterações. Ausência de feridas em ambas as pernas.

Tabela 1- Pulsos dos membros inferiores
Tabela 1- Pulsos dos membros inferiores
Figura 1 – Exame físico em paciente com cianose plantar não fixa em membro inferior esquerdo.
Figura 1 – Exame físico em paciente com cianose plantar não fixa em membro inferior esquerdo.

Prosseguimento do caso após avaliação clínica

Realizada internação hospitalar da paciente, seguida de repouso no leito em proclive, aquecimento passivo do membro com algodão ortopédico e faixa crepe frouxa, compensação de doenças de base. Iniciada analgesia e anticoagulação com heparina sódica em bomba de infusão.

Foi então indicada cirurgia, realizados exames laboratoriais gerais e eletrocardiograma (ECG) de urgência.

Exames complementares

 Tabela 2 – Exames laboratoriais no PS
Tabela 2 – Exames laboratoriais no PS
  Figura 2 – ECG com FA
Figura 2 – ECG com FA

Enquanto aguardava o preparo da sala cirúrgica, foi solicitado um ultrassom (USG) com doppler de membro inferior esquerdo. Achado de oclusão da artéria femoral comum esquerda, com material hipoecogênico endoluminal no vaso em questão e sem fluxo ao mapeamento com doppler colorido.

  Figura 3 – USG Doppler do MIE
Figura 3 – USG Doppler do MIE

Hipótese diagnóstica

Oclusão arterial aguda de membro inferior esquerdo de origem cardioembólica.

Evolução

Paciente encaminhada para o centro cirúrgico, realizada fasciotomia da perna esquerda e embolectomia por acesso inguinal esquerdo. Saída de coágulos em moderada quantidade da bifurcação da artéria femoral.

Fig 4. Produto de embolectomia do MIE.
Fig 4. Produto de embolectomia do MIE.

Encaminhada à UTI no pós-operatório, evoluiu com bom controle álgico, pulsos distais presentes e membro inferior esquerdo bem perfundido. Realizado fechamento primário da fasciotomia e transição de anticoagulação para varfarina, alta hospitalar com INR 2,5, com seguimento ambulatorial para anticoagulação.

Questões para orientar a discussão

1. Pela história e exame clínico da paciente, qual o diagnóstico sindrômico e etiológico para o quadro apresentado? Qual é a doença de base que está levando a esse quadro?

2. Quais as principais etiologias dessa doença?

3. Era necessário realizar exame de imagem neste caso?

4. De que forma podemos classificar a apresentação inicial? Quais são as implicações dessa classificação?

5. Quais os diagnósticos diferenciais?

6. Quais as possibilidades de tratamento?

7. Como será o seguimento desta paciente?

Discussão do caso de obstrução arterial aguda

Conceitos

A oclusão arterial aguda (OAA) é uma oclusão súbita de uma artéria levando a um desequilíbrio circulatório do território por ela irrigado, resultando em isquemia de intensidade variável1 . Sua apresentação clínica depende da etiologia da obstrução. As causas mais comuns são: embolia arterial, trombose arterial e trauma local. Após duas semanas do evento agudo, a isquemia arterial passa a ser considerada crônica2,3.

Epidemiologia

A incidência de isquemia aguda nos membros inferiores é 1,5 casos para cada 10.000 pessoas ao ano4 , correspondendo a 12% de todas as cirurgias em uma unidade vascular.

A expectativa de vida para os pacientes com isquemia aguda é similar à de muitos tipos de câncer; somente 14-44% estarão vivos em 5 anos, sobrevida significativamente menor do que nos controles.

Os pacientes com trombose sobrevivem duas vezes mais do que os com embolia, mas, com frequência, perdem o membro afetado duas vezes mais. Quando a intervenção não é realizada, 2/3 dos pacientes sofrem amputação.

A isquemia nos membros superiores corresponde a apenas 20% dos casos de isquemia de membros, apresenta melhor prognóstico de vida e de salvamento do membro, tem relação com embolia em 80% dos casos e, geralmente, ocorre em pacientes com fibrilação atrial. O tratamento conservador é associado à claudicação do membro5 .

Patogênese

Apesar das diferentes causas, a patogênese da OAA é basicamente a mesma. Quando há oclusão de uma artéria sem doença obstrutiva prévia, ocorre uma sídrome isquêmica, cuja gravidade dependerá da circulação colateral preexistente. O primeiro tecido a ser afetado é o nervoso, por isso o paciente apresenta perda inicial de sensibilidade e motricidade. Depois, ocorre lesão das células musculares estriadas, tendose demonstrado alterações irreversíveis já após 4 a 6 h de isquemia, seguidas pela isquemia de pele, tecido celular subcutâneo e adiposo. E, por último, ocorre a isquemia do osso6 .

Etiologia

As principais causas de OAA são: embolia arterial, trombose e trauma. A embolia arterial consiste na progressão, na corrente sanguínea, de trombos, fragmentos de placas ateromatosas, células tumorais, gases ou outros corpos estranhos, desprendidos ou introduzidos em um local qualquer do aparelho cardiocirculatório, podendo ocasionar oclusão parcial ou total de uma artéria em um ponto distante da origem deles na corrente sanguínea. Os êmbolos migram em velocidade variável, alojando-se em regiões de diminuição abrupta de calibre arterial: bifurcações arteriais e emergência de colaterais importantes. A bifurcação femoral é o local mais frequentemente atingido, respondendo por 35 a 50% dos casos7 . Aproximadamente 20% dos êmbolos atingem a circulação cerebral e 10% a visceral. As embolias podem ser classificadas quanto a sua etiologia em:

• Cardíacas (78-96%): o coração é a principal fonte emboligênica arterial. A causa mais frequente da formação desses trombos é a fibrilação atrial que acompanha as lesões da valva mitral de origem reumática, o hipertireoidismo, o infarto agudo do miocárdio (IAM) e a miocardioesclerose.

• Extracardíacos: aneurismas, aterosclerose com embolização distal, arterites, drogas, corpo estranho, iatrogênico (pós-procedimentos diagnósticos ou terapêuticos) etc.

A trombose arterial é uma obstrução total ou parcial de uma artéria por trombo formado no local, a partir de alterações patológicas que envolvem a hemostasia. Tal evento, geralmente, ocorre no local de uma estenose arterial com lesão endotelial, de um enxerto ou de um stent, ou ainda consequente a um estado de hipercoagulabilidade. Suas possíveis etiologias são:

  • Degenerativas: aterosclerose, aneurisma, dissecção, doença arterial cística.
  • Displásicas: displasia fibromuscular.
  • Inflamatórias: tromboangeíte obliterante, arterite de células gigantes, poliarterite nodosa, lúpus eritematoso sistêmico etc.
  • Mecânicas: trauma local repetitivo, procedimentos invasivos, compressão muscular.
  • Hematológicas: trombofilia, policitemia vera, trombocitose.
  • Miscelânia: neoplasias, infecções, hiper-homocisteinemia, trombose de enxertos.

Quadro clínico da obstrução arterial aguda

O quadro depende, inicialmente, do território arterial acometido, mas costuma cursar com dor súbita seguida de parestesia (hipoestesia tátil, dolorosa, térmica e paresia), paralisia, esfriamento do membro, palidez da extremidade, que é intensificada com elevação do membro, cianose não fixa, cianose fixa e flictenas (necrose da pele). Além do quadro descrito, no exame físico é possível identificar ausência de pulsos distais ao ponto de oclusão e colabamento de veias superficiais. Quando ocorre ingurgitamento de veias, deve-se suspeitar de trombose venosa associada ao quadro. Em inglês, os sintomas são conhecidos com os 6Ps da isquemia aguda: pain, pallor, poikilothermia, pulselessness, paresthesia and paralysis.

Diagnóstico

O diagnóstico da OAA pode ser estabelicido basicamente com uma história clínica e exame físico minucioso. A suspeita da provável etiologia e a severidade da isquemia determinam se algum exame dianóstico deve ser realizado ou não.

Na história clínica, devemos avaliar o tempo de aparecimentos dos sintomas, modo de início e fatores desencadeantes. No exame físico, realizar a palpação dos pulsos, verificação dos níveis de alteração da coloração cutânea e temperatura e a propedeutica neurológica.

Para avaliar a isquemia do membro, podemos usar a Classificação de Rutherford, que auxilia na decisão sobre a necessidade de exames adicionais e de conduta.

1. Viável: dor em repouso, porém sem ameaça imediata ao membro. Ausência de déficit neurológico ou fraqueza muscular, enchimento capilar normal, sinais de Doppler arterial e venoso claramente audíveis.

2. Ameaçado: isquemia reversível, membro salvável, sendo possível evitar uma amputação maior se a obstrução for rapidamente aliviada

a. Marginalmente ameaçado: Pode apresentar dormência e pequena perda sensorial restrita aos artelhos, dor descontínua e, frequentemente, ausência de sinal de Doppler arterial, porém venoso audível. Pode ser salvo pelo tratamento imediato.

b. Ameaça imediata. Apresenta dor isquêmica em repouso persistente, perda de sensibilidade além dos artelhos, algum grau de perda motora (paresia ou paralisia) e ausência de sinais audíveis no Doppler arterial e venoso. Pode ser salvo pela revascularização imediata.

3. Inviável: há perda de sensibilidade, paralisia muscular acima do pé, ausência de enchimento capilar, ou, eventualmente, contratura muscular, ou pele marmórea. Ausência de sinal de Doppler (venoso e arterial). Geralmente, evolui para amputações maiores ou para lesões neuromusculares permanentes.

Uma vez estabelecido o diagnóstico de oclusão arterial aguda e sua severidade, é necessário determinar o diagnóstico etiológico. É fundamental a tentativa de diferenciação entre embolia e trombose arteriais, pelo fato de suas histórias naturais e tratamento cirúrgico serem essencialmente diferentes.

Tabela 3- Comparação das características da embolia e da trombose para auxiliar no diagnóstico diferencial.

Métodos complementares

Para escolher o tipo de exame de imagem que será realizado na OAA, devemos avaliar: a disponibilidade do método, o tempo para a realização e interpretação, a urgência e possibilidade de revascularização do membro acometido. Temos como opções de exames diagnósticos complementares:

Ultrassom Doppler: Confirma o diagnóstico, local da obstrução, dados sobre circulação colateral e eventual trombose venosa associada. Pode auxiliar no diferencial entre trombose e embolia a partir de dados obtidos do exame da extremidade contralateral. Sinal de fluxo distal com pressão > 50 mmHg permite inferir presença de razoável circulação colateral. Ausência de sinal de Doppler em artérias distais indicam gravidade de quadro.

Arteriografia: Permite localizar a obstrução, definir a etiologia (entre embolia ou trombose), visualizar a árvore arterial distal, além de facilitar a decisão em relação às opções terapêuticas. Tem indicação em extremidade viável e não deve retardar tratamento.

Angiotomografia: Tem como vantagen a rápida execução e a possibilidade de reconstrução tridimensional, auxiliando na programação cirúgica. Como desvantagens: indisponibilidade, necessidade de uso de contraste nefrotóxico e alergênico, o que pode retardar tratamento definitivo.

Diagnóstico diferencial

A principal patologia que devemos diferenciar da OAA é a trombose venosa profunda:

 Tabela 4 – Características clínicas para auxílio no diagnóstico diferencial entre OAA e TVP.
Tabela 4 – Características clínicas para auxílio no diagnóstico diferencial entre OAA e TVP.

Também devemos fazer diagnóstico diferencial com as seguintes condições que também causam dor e redução de perfusão: obstrução arterial crônica e síndrome compartimental.

Tratamento da obstrução arterial aguda

O principal objetivo do tratamento é a preservação da vida e do membro. Para isso, deve-se avaliar rapidamente as condições clínicas do doente com exames pré-operatórios e iniciar os cuidados gerais.

  • Evitar manobras intempestivas, manuseando membro e paciente com delicadeza.
  • Não puncionar veias ou colocar eletrodos para ECG no membro afetado.
  • Repouso no leito, em proclive. Tronco elevado em caso de obstrução de MMSS.
  • Proteger membro contra extremos de temperatura (aquecimento passivo com algodão ortopédico, faixa crepe frouxa). Não realizar aquecimento ativo.
  • Compensação de doenças de base dentro do possível. Na abordagem medicamentosa, devemos iniciar o mais rápido possível a anticoagulação plena com heparina sódica – um bolus de 80 UI/Kg, seguido de infusão contínua em bomba de 18 UI/Kg/h com ajustes para mante o R 1,5-2,0. Em conjunto, iniciar o tratamento da dor com analgésicos e hidratação venosa.

Tratamento cirúrgico

Se houver viabilidade do membro acometido e condições clínicas, o paciente deve ser encaminhado ao tratamento cirúrgico. Como opções temos:

  • Embolectomia: realizada com o cateter tipo Fogarty em OAA por êmbolo, em artérias pouco ou não ateroscleróticas. Há rápida restauração de fluxo sanguíneo, com procedimento relativamente simples.
  • Fibrinólise por cateter: deve ser indicada em pacientes sem contraindicação ao uso de fibrinolítico, menos de 14 dias de história, circulação colateral suficiente para manter membro por 10-12 horas, baixo risco de desenvolver mionecrose e lesão nervosa. Sempre que possível, realizar o favorecimento de trombólise local pelo risco de sangramento local e sistêmico.
  • Derivação: nos casos de trombose em pacientes de alto risco: pensar em derivações extra-anatômicas (femorofemoral, axilo-femoral).
  • Angioplastia transluminal: nos casos de trombose (pode ser precedida de trombólise com bons resultados).
  • Trombectomia: desobstrução arterial associada ou não à angioplastia, endarterectomia, fibrinólise.
  • Fasciotomia: pode ser necessária em casos selecionados, com edema intenso e sinais de síndrome compartimental.
Fig. 5 – Fasciotomia em MIE.

Fig. 6 – Membro com isquemia irreversível.

Amputação: indicada em extremidades clinicamente inviáveis, paciente em mau estado geral, membros paralíticos. As variáveis que predizem o risco de amputação são o tempo total de isquemia, a idade avançada e a não anticoagulação pós-operatória. Nem todas extremidades agudamente isquêmicas são recuperáveis, e a amputação para manutenção da vida pode ser o desfecho apropriado8 .

Complicações da obstrução arterial aguda

Aproximadamente metade das mortes por isquemia aguda de membros após procedimentos terapêuticos é causada por complicações tromboembólicas. Preconiza-se ao menos 3 meses de anticoagulação no pós-operatório9 .

Nos casos de OAA, devemos sempre atentar para a síndrome compartimental e síndrome de isquemia-reperfusão. Na primeira, ocorre o aumento da pressão nos compartimentos musculares situados entre as fáscias inelásticas e ossos, a ponto de comprometer a perfusão tecidual e a alteração irreversível de músculos e nervos. Devemos realizar a descompressão através de fasciotomia (Fig. 5) se pressão tecidual > 30 mmHg10. Após 1-2 semanas do procedimento, deve-se suturar a pele ou aguardar a cicatrização por segunda intenção.

A síndrome de isquemia-reperfusão ocorre após isquemia de grandes massas musculares, com eventual desenvolvimento de alterações metabólicas locais e sistêmicas após desobstrução arterial e reperfusão de tecidos isquêmicos. Pode causar: acidose metabólica, hipercalemia, hipoxemia, mioglobinemia, aumento de CPK, DHL e SGOT11. No tratamento, deve-se corrigir distúrbios ácido-base e hidroeletrolíticos; se necessário, realizar diálise, fasciotomia ou amputação de membro. Atentar para reperfusão controlada, hipotermia e hemodiluição.

Pontos importantes sobre obstrução arterial aguda

  • A oclusão arterial aguda deve ser identificada rapidamente e deve-se instituir o tratamento indicado imediatamente, sob risco de amputação do membro caso não sejam iniciadas as medidas de prontidão.
  • Realizar anamnese detalhada, com informações sobre comorbidades do paciente, história de claudicação, fibrilação atrial crônica, visando distinguir um quadro de oclusão arterial aguda por trombose ou embolia, uma vez que o tratamento para as duas condições pode ser diferente.
  • As oclusões arteriais agudas devem ser classificadas segundo Rutherford, que correlaciona o risco de perda de membro, e com isso determinar o tratamento adequado.
  • Iniciar anticoagulação plena imediatamente, caso não haja contra-indicação.
  • Embolia arterial sem ateromatose associada é tratada costumeiramente com embolectomia com catéter de Fogarty.
  • Trombose arterial aguda pode ser tratada com angioplastia transluminal, tromboendarterectomia, derivações arteriais.

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