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A Fascite Plantar é uma condição que promove dor na região do calcanhar, o que pode ser bastante desgastante para alguns indivíduos. Mais de 65% das pessoas referem sensibilidade no calcanhar e 80% dos indivíduos que referem dor na região plantar têm fascite plantar.
A doença tem diagnóstico clínico e a atenção a uma boa anamnese e exame físico são essenciais.
Anatomia Plantar
Inicialmente, deve-se compreender que a fáscia plantar é um tecido conjuntivo que tem por função sustentar o arco do pé. Ela é composta por um elemento central (aponeurose) mais espesso e elementos medial e lateral, mais finos.
Imagem demonstra as estruturas plantares, como a aponeurose plantar, e permite compreender sua ação que, sob tensão, mantém o arco do pé nas fases finais de caminhada
Hicks, um dos maiores estudiosos do tema, mostrou que a fáscia plantar é tencionada durante a última fase de sustentação de peso durante o ato de caminhada, como também o modo como as articulações metatarsofalangeanas dorsiflexionam, o que aplica uma força de tração em seu ponto de inserção proximal na porção medial do calcâneo, tração essa que mantém o arco longitudinal do pé, o que foi denominado Efeito Molinete na sola.
Essa função é essencial, pois desempenha um papel dinâmico durante o ciclo da marcha, onde se alonga durante a fase de apoio, armazenando energia potencial durante o processo e trava o mediopé durante a retirada dos dedos para fornecer uma estrutura rígida para propulsão.
A fáscia plantar então se contrai passivamente, convertendo a energia potencial previamente armazenada em energia cinética e auxilia na aceleração.
Fisiopatologia da Fascite Plantar
As algias da região plantar são bastante comuns, mas o mecanismo da fascite plantar ainda não é firmemente estabelecido.
Fascite é um termo errado!
Essa é uma primeira coisa que precisa ser dita para se compreender adequadamente a fisiopatologia e tem 2 motivos:
- primeiro que não ocorre primariamente uma inflamação aguda, mas sim um processo degenerativo crônico, o que leva especialistas a falarem em “fasciose plantar” ou “fasciopatia plantar” e,
- segundo, que a estrutura acometida não é uma fáscia e sim uma aponeurose.
Alteração degenerativa
A alteração degenerativa, com base biomecânica no uso excessivo da estrutura da aponeurose e fáscias plantares é o que causa a dor, mecanismo bastante similar ao “Cotovelo de Tenista”, cujo mecanismo se desenvolve por repetições que causam microtraumas.
Essa degeneração, muito bem visualizada em histologia que demonstra espessamento e fibrose acentuados da fáscia plantar, juntamente com necrose de colágeno, metaplasia condroide e calcificação, cursa com a inflamação local e causa a dor. Por esse motivo muitos pacientes respondem bem ao uso de esteroides locais.
Outra base de reforço para essa hipótese é o fato de à noite o pé geralmente cair em uma posição de flexão plantar (menor estiramento da fáscia) e quando o paciente sai da cama pela manhã, quando o pé se move em dorsiflexão durante a caminhada, a fáscia plantar se contrai levemente, e esse alongamento inicial associado ao despertar matinal causa dor.
Compressão de estruturas nervosas
A compressão de estruturas nervosas, como o N. Plantar Lateral, que passa entre a superfície profunda do flexor longo dos dedos e a inserção calcânea da aponeurose (onde se formam os esporões calcâneos ou “esporão de galo”) pode gerar dor focal, embora não piore com a dorsiflexão passiva dos dedos dos pés.
Caso a dor seja mais difusa, co sensibilidade aumentada na lateral do pé, deve-se ter atenção ao abdutor longo do hálux, o que pode demandar liberação cirúrgica.
Degeneração do coxim adiposo
Por fim, degeneração do coxim adiposo, mais comum em pacientes mais velhos, também promove dor na região calcânea, atrofia essa que pode se agravar com uso de injeções locais de esteroides.
Epidemiologia:
Só nos EUA, aproximadamente 1 milhão de pessoas buscam o serviço básico de saúde por queixas de dor no pé e que resultam em diagnóstico de fascite plantar.
A síndrome da dor subcalcânea afeta amis homens com idade entre 40-70 anos, embora estudos dirigidos indiquem que maioria dos afetados por fascite plantar são mulheres com idade entre 45-64 anos.
Outro dado importante é que até 1/3 dos pacientes apresentarão a doença bilateralmente.
Diagnósticos diferenciais para fascite plantar
Algumas condições podem cursar com a sintomatologia presente na fascite plantar, o que demanda uma boa coleta de história e exame físico para que se chegue ao diagnóstico correto:
Artrite reumatóide
Seus sintomas são bilaterais e é uma das causas mais prováveis em mulheres.
Espondilite Anquilosante ou Síndrome de Reiter
Considerar essas possibilidades se o paciente for homem.
Abcesso
Em pacientes com diabetes mellitus, o abcesso de partes moles é um diferencial importante
Neoplasia ou Infecção
Nos sinais de perda de peso, dor noturna e febre, é importante investigar a presença de neoplasia ou de infecção, especialmente em pacientes com neuropatias
Outros diagnósticos diferenciais incluem o aprisionamento do primeiro ramo do nervo plantar lateral ou do nervo calcâneo medial, radiculopatia de ramo S1 e fratura oculta.
Diagnóstico da Fascite Plantar
O diagnóstico é CLÍNICO! Deve-se sempre lembrar disso. Os exames de imagem vêm somente reforçar…
Assim, é atenção ao paciente e sua história. Relato de dor no calcanhar nos primeiros passos da manhã e final da noite ou após ficar muito tempo sentado ou em pé ou dor aguda na palpação de região plantar medial do calcâneo, é pra ficar alerta. Muitas vezes, na tentativa de minimizar a dor, o paciente vai referir história da tentativa de uso de palmilhas ou até entrar no consultório com Pé Equino (andar apoiado na ponta dos pés).
O paciente vai referir dor ao Teste do Molinete, que consiste na dorsiflexão passiva do hálux e demais pododáctilos, e apresentar Sinal de Tinel, que é dor na percussão da região inervada pelo N. Tibial Posterior.
A observação de fatores de risco também pode levar à suspeição, como nos casos de pessoas muito sedentárias ou bastante ativas que andam ou correm muito, como também pessoas que passam muito tempo em pé, presença de sobrepeso (IMC > 27) e pronação excessiva do pé (pé chato) ou arco acentuado (pé cavo).
Na suspeição clínica, pode-se solicitar alguns exames que venham a reforçar sua hipótese diagnóstica. No entanto, embora alguns exames cursem negativo para sinais fascite plantar, se atenha à clínica do paciente!
– Radiografia: pode-se solicitar incidências em AP e Perfil do pé e de tornozelo em Ortostase. Achado de 50% das radiografias, o “Esporão de Galo” não é causa da fascite plantar e deve-se considerar um achado fortuito, ou seja, a sua não aparição não exclui a fascite.
– Cintilografia: a Cintilografia com Tecnécio evidenciará hipercaptação no ponto de máxima sensibilidade no calcanhar
– Eletroneuromiografia: bastante útil na suspeita de base neurogênica, como aprisionamento da raiz do nervo S1, síndrome do túnel do tarso ou aprisionamento do nervo plantar lateral
– Ultrassonografia: exame bem interessante por ser barato e rápido e que evidencia espessamento da fáscia, reforçando fascite plantar se a fáscia proximal tiver espessura >4mm e áreas de hipoecogenicidade
– Ressonância Magnética: bastante útil na investigação de neoplasia ou fratura oculta, como também para avaliar o espessamento da fáscia plantar proximal (será visto tanto o espessamento quanto hipersinal em T2)
– Exame de sangue: pode-se solicitar contagem de glóbulos brancos, antígeno leucocitário humano B27, anticorpos antinucleares e ácido úrico, principalmente nos pacientes mais jovens ou naqueles pacientes com dor bilateral no calcanhar
O tratamento na fascite plantar
Maioria, CONSERVADOR. Isso é o que mais deve-se destacar. Normalmente o problema se resolve espontaneamente, se retirado os fatores agressores que propiciam a lesão. Quando indolente, ou seja, não responsivo aos tratamentos conservadores, aí entra o papel do cirurgião na resolução ou melhoria do problema. Assim, o leque de opções são:
– Modificação de Estilo de Vida: deve-se evitar as atividades de alto impacto ou que promovam estresse por repetição. Como já dito a grande maioria vai se resolver espontaneamente, de modo que apenas 1-2% demandarão tratamento cirúrgico. Nessa abordagem, é importantíssimo que se converse com o paciente sobre suas expetativas em relação ao tratamento e como esse se seguirá pois, como já dito, as vezes a doença é indolente o que pode ser frustrante para o paciente.
– Uso de AINES
– Injeção de esteroides: é uma medida bastante eficaz a curto prazo, mas que traz sério risco de atrofia do coxim gorduroso e, ocasionalmente, incorrer em ruptura da fáscia plantar, ruptura essa que pode ter risco minimizado se a injeção for aplicada na face medial do calcanhar, superior à fáscia plantar.
– Alongamento: a prática de alongamentos excêntricos, que são exercícios realizados sob carga enquanto o músculo é alongado lentamente, tem boa resposta. Outras formas de alongamento são “empurrar a parede”, em que o paciente se apoia na parede, como se fosse empurrá-la, mas não retira o antepé do chão, forçando estiramento da aponeurose plantar, feito em pelo menos 2 minutos em intervalos de 10 segundos no lado afetado, pelo menos 2 vezes diário, ou “levantamento da toalha”, que com os dedos do pé afetado, o paciente pega uma toalha de papel seca, deixa-a cair e repete por 2 minutos uma vez ao dia à noite. Há a técnica de “rolo de gelo” que consiste em rolar o pé sobre uma garrafa congelada por 2 min uma vez ao dia à noite. A massagem miofascial profunda da fáscia plantar é utilizada, mas não há evidências sérias para indicação, embora muitos pacientes relatem melhora.
– Dispositivo ortopédico: instrumentos que promovem relaxamento da aponeurose plantar, como talas noturnas e palmilhas especiais
– Toxina botulínica: resultados promissores, com bom efeito, mas ainda em fase experimental
– Terapia de Ondas de Choque: muito utilizada em centros especializados, especialmente nos pacientes que se recusam à cirurgia. As ondas de choque causam microdisrupção da fáscia, cirando resposta inflamatória que revasculariza e recruta fatores de crescimento, reparando os tecidos moles
– Cirurgia: utilizada quando todas as tentativas conservadoras falham após 1 ano ou mais. No procedimento, menos de 50% da fáscia é seccionada, podendo ser feita também a liberação do N. plantar lateral se a base for neurológica. Necessário lembrar que embora seja tradição em alguns centros, não é necessário a remoção do esporo calcâneo, sendo sua exérese definida caso a caso. Deve-se ter em mente também suas desvantagens, como cuidado na incisão, imobilização do membro e complicações que podem surgir, como achatamento do arco, lesão do nervo, fratura do calcâneo, longo tempo de recuperação
Como proceder na fascite plantar
Não há protocolos bem definidos. Vai depender bastante da sua prática e experiência como também da conduta onde você trabalha. Mas de um modo geral, uma boa sequência é: Coletar uma boa história, fazer um bom exame físico, identificando fatores predisponentes, como também testes/sinais especiais (Molinete e Tinel).
Diagnosticado, orientar sobre estilo de vida, prescrever técnicas de alongamento e AINES para reduzir inflamação. Se inflamação acentuada, pode-se prescrever esteroides locais. Se após algumas semanas os sinais persistirem, solicite exames de imagem para melhor avaliar (radiografia, USG, RNM, cintilografia). Sinais indicativos de fascite vão demandar outros tratamentos ainda não testados. Caso após 1 ano (considerar 6 meses se a dor persistente for muito intensa), tratamento cirúrgico.
Conclusão
A fascite plantar, ou melhor Fasciose Plantar, é uma doença com base degenerativa. Seu sintoma principal é a dor na porção medial do calcâneo, especialmente ao caminhar de manhã e no fim do dia. O diagnóstico é essencialmente clínico, com Teste do Molinete e Sinal de Tinel sendo bons indicativos da lesão. O tratamento é primariamente conservador, mas sua irresolução em um ano demanda abordagem cirúrgica.
Autor: Felipe Dias
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Texto de outros colaboradores SANAR: https://www.sanarmed.com/sua-dor-no-calcanhar-pode-ser-fascite-plantar
Referências
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Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.