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O que é Síndrome da tempestade de citocinas? | Colunistas

O que é Síndrome da tempestade de citocinas? | Colunistas

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Olá caro leitor. Já está sendo bem documentado na literatura emergente (2020 – atual) a ocorrência da síndrome da tempestade de citocinas (STC) em quadros graves da COVID-19. Nesse texto, minha intenção é apresentar a você o que é a STC bem como a partir de quais insultos pode se desenvolver uma STC e contextos em que o quadro clínico pode ser encontrado. A partir disso, então, poderemos discutir acerca de sua relação com a COVID-19.

INTRODUÇÃO

A STC consiste em um fenótipo clínico de inflamação sistêmica, instabilidade hemodinâmica, hiperferritinemia e pode evoluir com falência múltipla de órgãos. Esse quadro proporciona ao paciente um prognóstico muito ruim, com alta probabilidade de evolução a óbito. A STC apresenta uma resposta imune disfuncional, exacerbada e descontrolada, na qual ocorre a ativação de citocinas pró-inflamatórias como Interferon (IFN) – γ, Fator de Necrose Tumoral (TNF), e interleucinas IL–1, IL–6 e IL-18.

Na STC, geralmente, a auto regulação negativa do sistema imunológico é perdida, causando um aumento exacerbado da produção e da concentração plasmática de citocinas, o que gera um feedback positivo e o seu aumento exponencial, além de aumento da inflamação e falência de órgãos.

INSULTOS INICIAIS

Vários insultos iniciais podem desencadear uma STC, entre as quais podemos mencionar: infecções, distúrbios autoimunes e inflamatórios bem como fatores iatrogênicos.

Distúrbios autoimunes e inflamatórios

– Linfo-histiocitose hemofagocítica (HLH): pode ser desencadeada por algum evento como, por exemplo, uma infecção. Cursa como uma desregulação imunológica hiperinflamatória com grande potencial letal.

– HLH familiar (FHLH) ou primária (pHLH): consiste em uma mutação em um único gene, ou seja, monogênica. A FHLH pode ser dividida em quatro categorias:

  • pHLH sem hipopigmentação:

– pHLH1: mutação presente no cromossomo 9q21.3;

– pHLH2: mutação localizada no cromossomo 10q21, no gene PRF1, causa deficiência de perforina;

– pHLH3: mutação presente no cromossomo 17q25, no gene UNC13D, gera deficiência da proteína Munc 13-4;

– pHLH4: mutação do gene STX11, no cromossomo 6q24.2, manifestando como deficiência na proteína Syntaxin 11;

– pHLH5: mutação no gene STXBP2, no cromossomo 19p13.2, causadora da deficiência na proteína Munc 18-2 e na proteína Syntaxin-binding.

  • pHLH com albinismo parcial:

– Síndrome de Griscelli: mutação no gene RAB27A, no cromossomo 15q2.3, consiste na deficiência da proteína Rab27a.

– Síndrome Chediak-Higashi: mutação localizada no cromossomo 1q42.3, no gene LYST e consequente deficiência na proteína Lyst.

– Síndrome Hermanski-Pudlak 2: mutação no gene AP3B1, no cromossomo 5q14.1, com consequente deficiência da proteína AP3βchain.

  • pHLH associado ao vírus Epstein-Barr e desordens linfoproliferativas:

– Deficiência ITK: mutação no gene ITK, no cromossomo 5q33.3;

– Deficiência CD27: mutação no gene CD27, no cromossomo 12p13.31;

– Deficiência MAGT1: mutação no gene MAGT1, no cromossomo Xq21.1;

– Síndrome XLP 1: mutação no gene SH2D1A, no cromossomo Xq25.

  • pHLH sem vírus Epstein-Barr e desordens linfoproliferativas:

– Síndrome XLP 2: mutação no gene XIAP, no cromossomo Xq25;

– Síndrome LPI: mutação no gene SLC7A7, no cromossomo 14q11.2.

Síndrome da Ativação macrofágica

É uma STC que pode ocorrer em pacientes com doença reumática estabelecida. Para cada doença reumatoide geralmente é documentado um gatilho que já foi identificado para o desenvolvimento da STC. Na artrite reumatoide, esses gatilhos são o citomegalovírus (CMV), o epstein-barr vírus (EBV), a E. coli, o vírus da Hepatite E e a Leishmaniasis. Na espondiloartropatia, o gatilho é o mycobacterium tuberculosis, enquanto na poliarterite nodosa também é o EBV. Ademais, na Sarcoidose podemos mencionar o EBV e o histoplasmosis como gatilhos.

Iatrogenia

Consiste no desenvolvimento da STC a partir da ingestão de medicamentos como Sulfassalazina, Ácido acetilsalicílico e Antibióticos. Essas substâncias provocam resposta celular de macrófagos e linfócitos, o que desencadeia a resposta imune. Geralmente, isso ocorre em pacientes portadores de distúrbios autoimunes.

Infecções

Nesse contexto, podemos citar os seguintes vírus causadores: Vírus Epstein – Barr, Herpes vírus H5N1 (Gripe Aviária) e H1N1 (Gripe Suína) que causam a Influenza, Adenovírus, Parvovirus (B19), vírus das Hepatites (HAV, HBV, HCV, HEV), vírus do Sarampo, Caxumba e Rubéola, além de Parechovirus (HPeV-3), Rotavírus, Enterovirus e HTLV.

Podemos relacionar também a ocorrência de STC em pacientes com febres hemorrágicas causadas por vírus de cinco famílias: Arenaviridae, Bunyaviridae, Filoviridae, Flaviviridae e Togaviridae.

O grupo Arenaviridae é composto pelos seguintes agentes etiológicos: Junin virus (Febre hemorrágica Argentina), Lassa vírus (Febre Lassa) e Lujo vírus (Febre hemorrágica de Lujo). Já o grupo Bunyaviridae conta com o Flebovirus (Febre do Vale do Rift), Nairovirus (Febre hemorrágica da Criméia-Congo) e com o Hantavirus (Febre hemorrágica por Hantavirus com síndrome renal). Uma sub classe de Hantavírus é o Sin Nombre vírus (Síndrome pulmonar por Hantavírus).

A família Filoviridae possui o Marburg vírus (Febre hemorrágica de Marburg) e o Ebola vírus (Febre hemorrágica Ebola). A família Flaviviridae possui agentes causadores de doenças endêmicas do Brasil como o vírus da Febre Amarela (Febre amarela), vírus da Dengue (Febre da Dengue e Febre da Dengue Hemorrágica) e Zika vírus (Febre Zika). Além disso, ainda nessa família existem vírus da encefalite japonesa (Encefalite Japonesa) e vírus do Nilo Ocidental (Febre do Nilo Ocidental). Por último, temos a família Togaviridae que possui o vírus Chikungunya (Febre Chikungunya).

A STC ainda é documentada na literatura decorrente da infecção de bactérias como a Legionella Species, Leptospira Species, Mycobacterium tuberculosis, Mycoplasma pneumoniae, Staphylococcus aureus, Brucella, Rickettsia, Ehrlichia, Coxiella burnetii, Mycobacterium avium e Clostridium.

No tocante a parasitas podemos dizer que os seguintes possuem relatos de relação com a STC na literatura: Plasmodium sp., Leishmania sp., Toxoplasma gondii, Entamoeba histolytica, Babesia sp. e Ascaris lumbricoides.

Quanto a relação com fungos, a STC é documentada na literatura com associação a: Cryptococcus neoformans, Histoplasma capsulatum, Penicillium marneffei, Candida sp., Pneumocystis sp.

COVID-19

Dessa forma, podemos observar que a lista de insultos que podem desencadear uma STC é extensa e em 2019 ganhou mais um integrante: o Sars-CoV-2.

A STC na COVID-19 vêm sendo relatada na literatura em casos graves, nos quais ocorre a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Estudos apontam importante letalidade de pacientes que cursam com a forma grave da doença, mas observa-se uma discrepância da taxa de letalidade em diferentes estudos, sendo justificada, segundo Lin e colaboradores (https://doi.org/10.1016/j.gendis.2020.06.009), pela ausência de padrão no recolhimento dos dados clínicos.

Vamos considerar aqui nesse texto o vírus em um estágio posterior a invasão celular, caso o leitor queira se inteirar ou revisar o processo de invasão sugiro a leitura do seguinte conteúdo: Você sabe como o Sars-CoV-2 invade uma célula? https://www.sanarmed.com/voce-sabe-como-o-sars-cov-2-invade-uma-celula-colunistas . O texto é de minha autoria e foi publicado aqui mesmo no SanarMed e aborda os mecanismos associados a invasão celular pelo Sars-CoV-2 em tecidos que expressam receptores para a enzima conversora de angiotensina 2.

Retomando, no contexto da STC, após a invasão celular, em questão de horas, ocorre a produção de citocinas inflamatórias e de interferon (IFN). O aumento da concentração plasmática de citocinas inflamatórias resulta no recrutamento de outras células inflamatórias, provocando aumento positivo dos mecanismos de inflamação. Macrófagos que habitam a região invadida pelo vírus se ligam a receptores Toll de linfócitos T CD4 positivos, causando sua ativação. A partir desse ponto, ocorre a secreção autócrina de IL-2, levando a diferenciação e proliferação de células T CD4+ efetoras e de memória, levando a liberação de IL-6, IL-5 e IL-4 a partir de células T auxiliares.

Linfócitos T CD8+ efetoras, na tentativa de matar células que foram infectadas pelo vírus, secretam substâncias como granzima e perforina, o que acaba causando dano tecidual. Ademais, podemos ressaltar a diferenciação de células B em células de memória. Todos esses processos levam a uma super ativação imune que lesa o tecido pulmonar e pode causas a SRAG. Se voltarmos ao início desse artigo, foi falado do mecanismo de feedback positivo para uma ativação disfuncional imunológica e esses mecanismos agora citados são uma síntese desse processo. A soma de todas essas citocinas inflamatórias aumenta exponencialmente a resposta imune, produz dano tecidual e sistêmico que, por fim, caracteriza a STC.

A lesão tecidual é resultante de um complexo desregulado, onde os mecanismos de reparo não conseguem acompanhar a quantidade de danos proporcionados pela inflamação e pela ação imune. De acordo com o agravamento do caso, o paciente cursa com morte de múltiplos órgãos e condições clínicas semelhantes ao choque. A falência de órgãos é por causa de um extravasamento sistêmico da alta concentração de citocinas, levando para o resto do organismo os mecanismos lesivos que foram iniciados no tecido invadido pelo vírus.

É muito importante o conhecimento da gravidade dos mecanismos associados a COVID-19 pois, assim, a conscientização da população pode surtir mais efeito e a mortalidade dessa doença pode diminuir até que a vacinação em massa seja uma realidade. Assim sendo, sempre é bom reforçar, acredite na ciência, se cuide e cuide dos seus próximos. Fique em casa e só saia quando for necessário. Obrigado!


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências:

Lin S, Zhao Y, Zhou D, et al. Coronavirus disease 2019 (COVID-19): cytokine storms, hyper-inflammatory phenotypes, and acute respiratory distress syndrome. Genes & Diseases. 2020 jun. 7:520–7. doi: 10.1016/j.gendis.2020.06.009

Hirawat R, Saifi MA, Goducu C. Targeting inflammatory cytokine storm to fight against COVID-19 associated severe complications. Life Sciences. 2021, feb. 267(15): 118923. doi:10.1016/j.lfs.2020.118923

Cron, Behrens. Cytokine Storm Syndrome. Springer Nature Switzerland, 2019. Doi: 10.1007/978-3-030-22094-5