Índice
“Doutor(a), eu sinto dores nas pernas!”
Dor nos membros inferiores é sem dúvida queixa muito comum na prática clínica e muitas vezes o paciente volta para casa com um pedido de doppler vascular. Vale à pena lembrar que existem vários mecanismos fisiopatológicos para explicar os sintomas do paciente e que tudo começa com uma boa anamnese e exame físico. Você deve, primeiro, caracterizar:
- Início da dor (bem como sua duração, podendo ser aguda ou crônica)
- Característica da dor (ex: pontada, queimação, padrões de irradiação)
- Lateralidade (uni ou bilateral; se bilateral, há um lado pior?)
- Fatores de piora ou melhora (ex: exercício físico, caminhadas, repouso, elevação de membros)
- Sintomas concomitantes (edema, parestesia, hiperestesia, cianose, palidez, hiperemia)
Também é de igual importância pesquisarmos na história fatores de risco para doenças vasculares, tanto arteriais (principalmente aterosclerótica) quanto venosas:
- Tabagismo
- Hipertensão
- Diabetes
- Hipercolesterolemia
- Tabagismo
- Sobrepeso e obesidade
- História pregressa e familiar de doenças vasculares: varizes, trombose venosa, doença arterial obstrutiva, doença coronariana, acidente vascular encefálico.
Alguns achados do exame físico são bem conhecidos e podem sinalizar comprometimento vascular, seja arterial ou venoso. Por isso, é sempre importante a inspeção do membro, palpação de pulsos e da temperatura, bem como avaliação da perfusão periférica.
Nesse artigo abordaremos doenças vasculares comuns, seus principais achados e características, de modo a te ajudar a definir uma hipótese diagnóstica e a propedêutica necessária. Mas antes, é preciso compreender no que consiste o exame de doppler vascular.
Entendendo a ecografia vascular
O exame chamado “Doppler Vascular” dos membros inferiores nada mais é que uma ultrassonografia que se utiliza do Efeito Doppler para analisar a hemodinâmica dos vasos sangíneos. Tal fenômeno físico é observado quando uma onda (por exemplo, o som) se aproxima ou se afasta de uma fonte receptora, sendo interpretado como aumento ou diminuição da sua frequência. No caso da ecografia vascular, a fonte emissora e receptora de ondas é o transdutor do aparelho, que emite e recebe ondas ultrassônicas e as interpreta com base nas reflexões (ecos) em contato com partículas em movimento.
Ou seja, a partir de detecções de movimento de corpos dentro da luz dos vasos (basicamente hemácias), pode-se analisar padrões ou variações de velocidade ou de direção de fluxo, tanto em artérias quanto em veias. Sendo assim, podemos detectar estados hemodinâmicos patológicos, como refluxo, fluxo invertido, estenose ou obstrução.
Diversas doenças vasculares podem ser detectadas ou confirmadas pela ecografia vascular, tanto arteriais quanto venosas.
FIGURA 1: Esquema representativo do Efeito Doppler, sendo a fonte emissora e receptora o transdutor ultrassonográfico. Variações na velocidade e no sentido do fluxo sanguíneo determinam diferentes frequências, que são interpretadas pelo aparelho e examinador.

Doppler arterial ou venoso?
Há muita confusão na hora de solicitar o exame de ecografia, muitas vezes por desconhecimento de colegas sobre os principais processos patológicos sobre os quais conversamos anteriormente. Frequentemente, são solicitados tanto doppler arterial quanto venoso do mesmo membro do paciente, o que raramente será necessário.
A solicitação deve ser realizada com base na suspeita clínica, a partir da qual é elaborada a hipótese diagnóstica. Vamos exemplificar: em um paciente com súbita dor e edema unilateral assimétrico em membro inferior, com história de cirurgia ortopédica recente e imobilização > 72 horas, a suspeita clínica é de trombose venosa profunda. Não há comemorativos arteriais no exame clínico ou história e muita vezes a insuficiência arterial pode ser facilmente descartada palpando-se os pulsos distais. Dessa maneira, o exame a ser solicitado é apenas o doppler venoso. O exame arterial pouco ou nada acrescentará ao manejo do paciente.
Seguem abaixo algumas das principais doenças vasculares dos membros inferiores, das quais você sempre deverá suspeitar ao examinar um paciente com queixa de dor ou desconforto. Dependendo de sua suspeita, um tipo específico de doppler deverá ser solicitado.
Doença vascular obstrutiva periférica (DAOP)
A DAOP resulta de acometimento primordialmente aterosclerótico das artérias dos membros inferiores. Geralmente progride de um grau assintomático, passando pela claudicação intermitente e, em graus avançados, a isquemia crônica ameaçadora do membro (Chronic Limb-Threatening Ischemia em inglês, a antiga “isquemia crítica”), que pode progredir, como o nome sugere, para uma amputação.
A claudicação intermitente é uma dor que acomete principalmente panturrilhas (ou até glúteos, se doença no setor aortoilíaco) ao caminhar, forçando o paciente a parar até que haja melhora com repouso. O sintoma é altamente reprodutível e geralmente se repete a uma distância específica (“Só consigo caminhar 100 metros, preciso parar”).
Com a progressão da doença, a distância de claudicação diminui, até que a dor passa a ser intensa e permanecer mesmo em repouso. Surgem alterações tegumentares (rarefação de pelos, ressecamento da pele, onicodistrofia). Diminutos traumas predispõem a ulcerações (geralmente pálidas e extremamente dolorosas) e necroses distais, principalmente em dedos. São sinais da isquemia crônica ameaçadora do membro. Esses pacientes demandam avaliação vascular e encaminhamento hospitalar como uma urgência relativa, na tentativa de revascularização sempre que possível.
Os pacientes com DAOP devem ser encaminhados a um angiologista ou cirurgião vascular. Deverá ser avaliado o índice tornozelo-braquial (ITB) se disponível. Um doppler arterial poderá ser solicitado para confirmação diangóstica, sobretudo se há proposta de revascularização.
FIGURA 2: Alterações tegumentares, palidez e lesões tróficas distais (necrose de dedos).

Oclusão arterial aguda (OAA)
A OAA resulta, em geral, de um processo trombótico ou embólico que resulta em oclusão de um vaso, gerando isquemia aguda distalmente. É um quadro súbito e em geral florido, com dor e parestesia significativos. Demanda avaliação vascular de urgência, sob risco de perda do membro.
É classicamente descrita com os “6 Ps”: Pulseless (pulso ausente), Pallor (palidez – ou cianose), Pain (dor), Paresthesia (parestesia), Paralysis (paralisia), Poikilothermia (hipotermia). De modo geral, facilmente identificável através desses comemorativos e de uma presumida fonte trombótica (DAOP pré-existente) ou embólica (fibrilação atrial, doença aneurismática proximal).
A suspeita de OAA pode ser confirmada com um doppler arterial enquanto se aguarda a avaliação vascular.
FIGURA 3: Oclusão arterial evidente, com cianose intensa unilateral.

Doença venosa crônica
Afecção muito comum, podendo atingir até 40% da população adulta, principalmente mulheres. Se manifesta em um espectro amplo de telangiectasias e veias reticulares, varizes, edema e dor. Geralmente os sintomas ocorrem no período vespertino, após longos períodos de pé ou sentado, podendo estarem associados a sensação de peso nas pernas, parestesias, queimações. Na maioria dos vezes o acometimento é bilateral.
Em casos avançados e não tratados, ocorrem alterações inflamatórias da pele (dermatofibrose, dermatite ocre), podendo progredir para úlceras venosas de difícil fechamento.
Os pacientes com sinais e sintomas compatíveis com doença venosa crônica devem ser submetidos a doppler venoso de mapeamento, para confirmar e esclarecer o mecanismo da insuficiência. É importante lembrar que, apesar de em maioria resultantes de mau funcionamento primário do sistema venoso superficial, há causas secundárias e inclusive com gênese no sistema profundo. Alguns exemplos são: síndrome pós-trombótica, síndrome de congestão pélvica, compressão tumoral.
FIGURA 4: Varizes, dermatite ocre e úlcera venosa tipicamente em topografia maleolar.

Trombose venosa profunda (TVP)
Muito conhecida dos plantões, é temida pela potencial progressão para embolia pulmonar. Trata-se de um conjunto geralmente agudo de sintomas unilaterais: dor, edema assimétrico, empastamento de trajetos venosos (panturrilha, fossa poplítea). Em casos raros de TVP iliofemoral extensa e edema acentuado, o quadro pode cursar com déficit perfusional chamado flegmasia (alba ou cerúlea, dependendo se presente palidez ou cianose).
Devem ser pesquisados os fatores de risco e história detalhada, somados aos achados do exame físico, para estratificar a probabilidade de TVP. O Escore de Wells hoje já é amplamente utilizado para definir necessidade de exame para confirmar TVP diante de alta probabilidade (aqui entra nosso doppler venoso) ou para excluí-la diante de baixa probabilidade (em geral, o D-dímero). É importante lembrar que, diante da alta suspeita de TVP, não se deve aguardar o doppler para iniciar a anticoagulação, salvo se alto risco de sangramento.
FIGURA 5: Dor e edema assimétrico agudos, alta suspeita para TVP.

Saiba mais sobre TVP aqui.
Causas não vasculares comuns de dor em membros inferiores
Vale lembrar que dores de etiologia não vascular são extremamente comuns, então você deve se esforçar para fazer o diagnóstico diferencial. O doppler pode ser solicitado para afastar causas vasculares, mas será dispensável se outras causas forem evidentes.
- Dor osteomuscular: Geralmente bem localizadas e delimitadas, desencadeadas por movimentos específicos ou trauma, podendo estar presentes em grupamentos musculares específicos ou mesmo articulações. Tendem à melhora em repouso.
- Dor neuropática: Em geral seguem dermátomos específicos e estão relacionadas a neuropatias diversas que devem ser investigadas (ex: mononeuropatias como do nervo isquiático, compressões radiculares na coluna vertebral). Deve-se pesquisar na história fatores desencadeantes, como doenças da coluna vertebral. Há também causas metabólicas de neuropatias periféricas como a causada pelo diabetes, que afeta particularmente membros inferiores de maneira variável (alterações diversas de sensibilidade), e geralmente está associada a descontrole no controle glicêmico ambulatorial.
- Infecções: Diversas infecções dos membros inferiores podem causar dor. Geralmente têm evolução aguda e se relacionam com alguma uma solução de continuidade tegumentar que predispôs a entrada de microrganismos patogênicos. É muito comum haver sinais logísticos (edema, eritema, calor), podendo ou não haver febre e elevação de polimorfonucleares e marcadores inflamatórios. São comuns as infecções de partes moles, como celulite e erisipela, bem como osteomielites e artrites sépticas. Fatores de risco incluem diabetes, insuficiência venosa e linfedema. Atenção especial deve ser dada ao exame físico dos pacientes diabéticos, que podem desenvolver lesões indolores e úlceras inadvertidas pela neuropatia diabética, podendo ser a “porta de entrada” da doença.
Ao término dessa leitura, você provavelmente deve ter percebido a ênfase no exame clínico para o direcionamento diagnóstico e propedêutico. O doppler vascular, quando bem indicado, facilita e muito o manejo do paciente com doenças vasculares! O conhecimento sobre quando e como solicitá-lo é crucial – você deve saber o que está procurando para achar o que precisa.
Autor: Dr Rafael Alves Carvalho
Instagram: @carvalho.vascular