Carreira em Medicina

É possível prever a morte? | Colunistas

É possível prever a morte? | Colunistas

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Talvez você já tenha ouvido falar que o escritor (e médico) Guimarães Rosa* previu a própria morte (1). Ele encerrou seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras com aquela frase já repetida ao limite do clichê: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Três dias depois de dizer isso, Guimarães Rosa também se “encantou”. Buscando explicações, pensei que a atenção treinada do (grande) escritor, aliada ao olho clínico do médico, tenham sido as razões desta possível premonição da própria morte.

*Ele era diplomata e poliglota, também – e você aí se achando grande coisa com seu Lattes.

Figura 1: Guimarães Rosa
Fonte: https://www.todamateria.com.br/guimaraes-rosa/

Por associação, lembrei também duma antiga palestra de Walter Edgard Maffei** (2), na qual ele menciona a famigerada*** “despedida da saúde” ou “melhora da morte”. Você deve conhecer ou, ao menos, ter ouvido sobre ela: é quando o paciente em estado grave tem uma breve e visível melhora, conversa (“se despede”) e, depois, volta a piorar, morrendo em pouco tempo. Segundo Maffei, isso ocorre porque o corpo doente, já exaurido na batalha contra a doença, deixa de reagir a ela. O que a princípio se apresenta como melhora, é o fim da batalha contra a morte.

**Ele foi professor de patologia geral e de anatomia patológica na Pontifica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e também fazia reuniões anatomoclínicas na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Essas reuniões contavam com grande participação e, inclusive, existe a gravação de uma delas e está disponível no Youtube – é a segunda referência, logo aí abaixo.

***“Famigerado” é o título de um conto do Guimarães Rosa presente no livro “Primeiras estórias”, considerado uma das melhores obras para começar a ler e se acostumar com o jeito roseano de escrever – fica a dica.

Com essas ideias na cabeça, pensei: será que existe algum estudo sobre a premonição da morte? Segue abaixo um resumo (bem resumido mesmo) do que encontrei de mais interessante nas plataformas BVS e Scopus com base nos termos “premonition of death” ****.

****Não encontrei nada em português sobre o assunto – um motivo para valorizar o tema entre nós.

Importância do tema

            A premonição de morte (PDM) é um evento reconhecido, ainda que pouco relatado. Como exemplo, pode-se registrar que a supracitada “despedida da saúde” já era conhecida há séculos na China (fenômeno de Hui Guang FanHGFZ), bem como no mundo ocidental (premonição de Lázaro ou fenômeno de Witzel-Ngel), o que demonstra um interesse comum de diversas culturas e tempos sobre o tema (3). Ademais, o fenômeno de premonição, além biologicamente plausível, é reconhecido como uma característica evolutiva que pode ajudar a evitar desastres, fato este observado inclusive em outros animais. Lembra das notícias de animais fugindo da praia antes de tsunamis?

            Por outro lado, um aspecto que desestimula o estudo do tema reside na dificuldade se em compreender a morte, uma vez que, sobre este processo natural, paira a sombra do fracasso profissional médico. Entretanto, aceitar e conhecer o fim da vida pode nos ajudar a postergá-la ou, ao menos, nos preparar melhor para o fim dela. Afinal, se descobrirmos qualquer característica do quadro clínico que permita prever a morte com alguma segurança, medidas curativas e/ou paliativas podem ser empreendidas de maneira mais efetiva.

Premonição da própria morte

            A literatura científica disponível registra poucas ocorrências de PDM. Dentre elas, há o caso do poeta e dramaturgo irlandês Edmund John Millington Synge, que viveu entre o século XIX e começo do XX. Synge refletiu sobre a morte em alguns de seus últimos poemas (4), falecendo pouco tempo depois de os ter escrito. Há também o exemplo de John Hunter, cirurgião inglês do século XIX que, segundo pessoas próximas, reconheceu seis dias antes de sua morte que faleceria em breve. (5)

            É honesto dizer que o poeta Synge fora acometido por linfoma de Hodgkin, e a fonte consultada não mostra qual era seu estado de saúde quando da escrita dos seus poemas que tratam do morrer. O cirurgião John Hunter, por sua vez, já se sabia cardiopata. Contudo, é interessante pontuar que a observação atenta é uma qualidade fundamental ao exercício tanto da medicina como da literatura. Assim, pode não ser obra do acaso que, dentre os poucos relatos de PDM, encontrem-se estes de um artista e de um médico, reforçando a hipótese de que a PDM observada em Guimarães Rosa se deva, ao menos parcialmente, à sua condição de escritor e de médico. Digo tudo isso para ressaltar que a PDM pode ser fruto de características objetivas, não sendo necessariamente um evento “sobrenatural” e indócil à análise científica.

            Todavia, um religioso parece lançar alguma luz sobre o tema. Segundo o líder espiritual tibetano Dalai Lama, é possível que mudanças na respiração e no comportamento antecedam a morte em dois anos, sendo percebidos pelo indivíduo sensível e que tenha conhecimento suficiente acerca do processo de morrer – o que pode incluir artistas e médicos neste grupo (7). De fato, as palavras de um religioso não costumam servir de argumento científico, mas ressalto que o terreno é incerto, com poucos estudos e, ademais, o budismo se caracteriza pelo ensino do autodomínio, o que potencializaria a sensibilidade aos sinais do próprio corpo.

            E, concluindo esta parte, será por acaso que as últimas obras de grandes escritores como Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Oswald de Andrade e José Lins do Rego tenham sido autobiografias? Não seriam elas deliberadamente obras de encerramento da carreira do escritor, que, percebendo (prevendo…) o próprio ocaso, decide refletir sobre a história mais importante de sua vida – ou seja, sua própria vida? Afinal, não é comum escrever a biografia de alguém que ainda tenha muito por viver. Biografias são o gênero por excelência das vidas concluídas (ou seja, dos mortos) e, no caso dos escritores aqui citados, das vidas que se encaminhavam para a conclusão (ou seja, para a morte).

Premonição da morte do outro

            São os profissionais de saúde que se destacam na PDM do outro, o que já era de se esperar. Vamos às evidências.

            Um estudo americano com 302 membros da Eastern Association for the Surgery of Trauma mostrou que a maioria dos profissionais já presenciou a PDM em pacientes e 53% concordam que pacientes com PDM têm uma mortalidade maior. A maioria dos entrevistados também acredita que a vontade do paciente interfere no desfecho de seu caso. Algo peculiar neste estudo foi levar em conta o “feeling” dos profissionais, que, poderia ser traduzido como intuição (sexto sentido, premonição…). Mesmo que o prognóstico na medicina ocidental se baseie em critérios científicos, há ainda profissionais que se baseiam em seu “feeling” durante o trabalho (3). Afinal, os protocolos não trazem respostas para tudo, a medicina não é uma ciência exata e, às vezes, acontece de a busca pelo diagnóstico e o tratamento se darem como a investigação de um crime, em que provas concretas dependem da experiência e do “faro” do investigador experiente para ganhar sentido – será por acaso que Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, também fosse médico? Há também relatos de que a PDM por profissionais de enfermagem já contribuiu para salvar vidas quando receberam a devida atenção.

            Mas a PDM não se restringe aos profissionais da saúde, englobando também cuidadores e familiares. Um estudo qualitativo japonês realizado em 2012 com cuidadores de pacientes acometidos por demência em áreas rurais mostrou que alterações no padrão respiratório são o principal indicador de morte próxima (8). Tal percepção decerto já aconteceu em outros lugares e épocas, o que pode ter influenciado culturas ao longo do tempo: para a medicina tradicional chinesa, é ao respirar que a vida da criança se inicia; no Velho Testamento, Deus dá vida a Adão assoprando em seu nariz; o verbo expirar também tem o sentido de morrer, deixar de existir.

            Há também um estudo indiano de 2010 semelhante a este, com os parentes de pacientes em estado terminal. Entre as 104 famílias estudadas, 40 delas observaram “experiências e comportamentos incomuns”, 30 pacientes agiram como se estivessem interagindo com parentes falecidos (especialmente seus pais) e houve 6 casos de PDM (9).

E daí?

            Espero que essa mistura de estudos inconclusivos, citações e referências tenha servido não como uma conclusão, mas, ao menos, que tenha mostrado que “tem coisa aí”. Eu sei: a gente prefere pensar na vida e em como prolongá-la, ainda que esse desejo esteja cada vez mais afastado de um sentido. Buscamos vida como quem busca dinheiro: quanto mais, melhor, simplesmente porque é assim e pronto. Enquanto isso os consultórios psiquiátricos, cultos religiosos e perfis sorridentes de redes sociais continuam a acolher gente às quais parece que não falta nada, mas, mesmo assim, elas não conseguem acordar e viver um dia sem ter vontade de se matar. Enfim, isso já é outra história.

            De resto, preste atenção em seu paciente, inclusive naquele que parece que “já era”. Sempre há o que se fazer, e não é porque uma queixa não se encaixa em uma doença que você conhece que ela não deva ter importância. Nem tudo é loucura, nem tudo é demência. Se não puder dar respostas, dê conforto e, também, atenção. E lembre-se: talvez aquele paciente “que se vai” tenha mais a te dizer do que o contrário. Como escreveu o poeta Charles Bukowski****** em seu poema “Forget it” (10), onde ele fala às pessoas que estiverem em seu velório:

“Você é o próximo e eu já sei uma coisa que você não sabe,

talvez”.

******Registro a coincidência de que tanto Guimarães como Bukowski eram apaixonados por gatos. A escolha das fotos não foi coincidência, já que também sou apaixonado por eles (pelos gatos e pelos escritores).


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


REFERÊNCIAS

  1. http://media.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/11/21/ilustrada-21_11_1967.pdf
  2. https://www.youtube.com/watch?v=_uGuF-j7Zk8&list=PL976E8A51BD5A8B79
  3. Bacon DR. Letters to the Editor. Bull Anesth Hist. 2004;22(4):3.
  4. Ballard BD. Premonition of Death as a Real Entity. 2013;
  5. Kodolikar DS. Premonition of Death in J . M . Synge ’ s Poetry. 2011;II(June):1–7.
  6. Série de cartas ao British Medical Journal entre 1958 e 1958, que contaram com a participação de diversos integrantes da comunidade científica relatando casos de PDM presenciados ou relatados – demonstrando novamente o interesse pelo tema e a falta de fontes que persiste até hoje. A carta aqui usada tem o título de “John Hunter’s Premonition of Death
  7. Fenwick P. Non local effects in the process of dying: Can quantum mechanics help? NeuroQuantology. 2010;8(2):155–63.
  8. Hirakawa Y, Uemura K. Signs and Symptoms of Impending Death in End-of-life Elderly Dementia Sufferers: Point of View of FormalCaregivers in Rural Areas. J Rural Med. 2012;7(2):59–64.
  9. Muthumana S, Kumari M, Kellehear A, Kumar S, Moosa F. Deathbed visions from India: A study of family observations in northern Kerala. Omega J Death Dying. 2010;62(2):97–109.
  10. http://www.pagaelpato.com/standby/bukowski.htm

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