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Resumo sobre Endocardite Infecciosa | Ligas

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A endocardite infecciosa (EI) é uma doença grave, potencialmente fatal, que consiste no acometimento das valvas cardíacas e do endocárdio mural por agentes infecciosos, mais comumente bactérias. A colonização ou invasão dessas estruturas por microrganismos pode levar à formação de vegetações, coágulos de plaquetas e fibrina infectados, contendo ainda leucócitos e hemácias, e à destruição dos tecidos cardíacos subjacentes.

A EI é classificada com base na sua manifestação clínica como aguda ou subaguda, refletindo a etiologia, gravidade e ritmo da doença.

Epidemiologia

A incidência de EI varia de um país para outro, sendo estimada em aproximadamente 3-10 episódios por 100.000 pessoas ao ano. O número de casos notificados muda drasticamente com a idade. A doença afeta em maior proporção idosos entre 70 e 80 anos como resultado de procedimentos associados a cuidados de saúde, tanto em pacientes sem patologias valvares prévias quanto em pacientes com valvas protéticas.

Adultos jovens usuários de drogas IV ou portadores de doenças valvares, sendo a cardíaca reumática a mais comum em países em desenvolvimento, também são considerados grupo de risco. Apesar de acometer mais pacientes do sexo masculino, pacientes do sexo feminino têm pior prognóstico.

Os fatores epidemiológicos também estão relacionados ao agente causal. Um aumento na taxa de EI estafilocócica foi observado devido ao crescente número de casos de hemodiálise crônica, diabetes mellitus, uso de drogas IV e inserção de dispositivos intravasculares, sendo estes fatores associados ao desenvolvimento de endocardite por Staphylococcus aureus. Infecções fúngicas são responsáveis por menos de 5% dos casos enquanto estreptococos do grupo viridans, junto com S. aureus, são responsáveis por 50% a 70% das infecções em válvulas cardíacas.

Quanto à mortalidade, vale salientar que mesmo com o advento de novos medicamentos, dos diagnósticos, das técnicas cirúrgicas e do tratamento de complicações associadas, as taxas ainda são elevadas.

Etiologia

A infecção de valvas cardíacas anteriormente normais por microrganismos com alta virulência, produzindo lesões necróticas e ulcerativas, pode levar ao surgimento de EI. Quando causada por agentes menos virulentos, a infecção tende a ser menos destrutiva e mais facilmente tratável.

A contaminação da corrente sanguínea pode ocorrer através de procedimentos odontológicos ou cirúrgicos que causem uma bacteremia transitória, compartilhamento de agulhas contaminadas e o rompimento das barreiras epiteliais do intestino, da cavidade oral ou da pele. As causas mais comuns são infecções por estafilococos, estreptococos e enterococos.

Nos grupos de alto risco, destaca-se S. aureus como o principal agressor em usuários de drogas IV e estafilococos coagulase-negativos, como Staphylococcus epidermidis, em casos de endocardite nas próteses valvares. S. aureus é uma causa comum de endocardite aguda de valvas nativa e protética.

O curso da doença pode diferir de acordo com o lado afetado do coração. Nos casos de infecção do coração esquerdo, a morbidade e a mortalidade são elevadas apesar dos tratamentos disponíveis. Em infecções do coração direito, como na valva tricúspide, a taxa de cura é superior. Já os estafilococos coagulase-negativos têm sido cada vez mais observados em infecções de valvas protéticas. A morbidade e a mortalidade associadas à EI causada por estes microrganismos são consideráveis, ainda que a infecção seja na forma subaguda.

A endocardite que acomete valvas cardíacas naturais previamente anormais ou lesadas é mais comumente causada por estreptococos do grupo viridans, que compõem a flora da cavidade oral. Atualmente, este grupo engloba as espécies S. sanguis, S. oralis (mitis), S. salivarius, S. mutans, S. intermedius, S. anginosus e S. constellatus, sendo as três últimas frequentemente ligadas ao desenvolvimento de abcessos e focos infecciosos metastáticos em indivíduos com EI. Outras espécies associadas ao surgimento da doença incluem Streptococcus gallolyticus (S. bovis), normalmente presente no trato gastrointestinal, e Streptococcus pneumoniae, que pode cursar com uma síndrome aguda com destruição valvar.

Na EI por enterococos, a idade e o uso de cateteres venosos centrais podem atuar como fatores de predisposição. A maioria das infecções é provocada pelo Enterococcus faecalis, associado a alterações do trato genitourinário. Demais agentes causadores incluem o grupo HACEK (Haemophilus spp., Actinobacillus spp., Cardiobacterium hominis, Eikenella corrondes e Kingella spp.), colonizadores da orofaringe e do trato respiratório superior, causando EI subaguda, e bacilos gram-negativos aeróbicos, associados a EI aguda e toxicidade sistêmica. Casos de endocardite fúngica, causada principalmente por espécies do gênero Candida, também são descritos.

Fisiopatologia

Anormalidades estruturais cardíacas valvares e não valvares, hemodinâmica alterada, lesão endotelial e deposição de fibrina e plaquetas são importantes fatores de predisposição para o desenvolvimento de EI. Apesar de o endotélio valvar ser resistente à colonização e infecção por bactérias circulantes, tais fatores de predisposição podem facilitar a aderência de microrganismos.

A formação de trombos com função reparadora ao longo do revestimento endotelial, suscetíveis à contaminação a partir de bacteremias transitórias, leva à uma ativação celular contínua, maior adesão plaquetária, deposição de fibrina e produção de citocinas e de fator tecidual, resultando no aumento das vegetações. A presença da vegetação, volumosa, friável e potencialmente destrutiva, pode ser observada em mais de uma valva e ser única ou múltipla. Sua organização frouxa, principalmente as intracardíacas, facilita a formação de êmbolos sistêmicos que percorrem a circulação. Fragmentos das vegetações podem ainda se alojar em pequenos vasos sanguíneos, resultando em hemorragias, abscessos e infarto do tecido. As vegetações da endocardite aguda são consideradas mais destrutivas, podendo evoluir com fibrose, calcificação e infiltrado inflamatório crônico.

Figura 1. Valva cardíaca lesada pela ação de microrganismos (Pinheiro)

Sítios de infecção liberam continuamente microrganismos para a corrente sanguínea. Muitas das bactérias ligadas à endocardite apresentam fatores que promovem sua adesão inicial ao endotélio e aos focos de trombos, e também são responsáveis pela adesão a dispositivos médicos como valvas protéticas. O risco de EI irá depender da magnitude da bacteremia e da habilidade do patógeno de atuar nas válvulas lesadas.

Apresentação Clínica

A EI pode ter dois tipos de evolução, subaguda e lenta ou aguda e fulminante.

  • Subaguda

A forma subaguda da doença, apesar de agressiva, normalmente tem início insidioso e não evidencia portas de entrada do patógeno. Os sintomas inicialmente são vagos, incluindo febre baixa, mal-estar, fadiga e perda ponderal, podendo incluir também artralgias e calafrios. Normalmente os sintomas de insuficiência valvar, como sopro e regurgitação, são os primeiros sinais que levam ao médico suspeitar de endocardite. Esses também podem ser encontrados na forma da modificação de um sopro pré-existente ou no surgimento de um novo sopro ou regurgitação.

Outros sintomas que também devem ser considerados são os acometimentos renais e neurológicos que podem ocorrer nesta doença. Os comprometimentos renais mais comuns são a glomerulonefrite por imunocomplexos (a qual pode ocorrer em consequência de uma derivação liquórica ventriculoatrial infectada), infartos e abscessos renais decorrentes de fenômenos embólicos. Já em relação aos sintomas neurológicos, destacam-se os acidentes vasculares isquêmico e hemorrágico, a meningite e o abscesso cerebral, que são as complicações menos frequentes. Também é importante ressaltar o aumento da probabilidade de embolia causada pela EI, a qual pode gerar consequências diretas e indiretas ao paciente. 

  • Aguda

Na forma aguda, a clínica se apresenta muito semelhante à variante subaguda, no entanto, o curso da doença é mais acelerado, com presença quase unânime de febre, aparente toxemia e possibilidade mais elevada de desenvolvimento de choque séptico.

Diagnóstico

Em caso de suspeita de EI, as três linhas de raciocínio mais utilizadas são: hemocultura, ecocardiografia e critérios clínicos. Devido à inespecificidade dos sinais e sintomas, o diagnóstico requer um grau elevado de suspeição, junto a uma boa anamnese. Pacientes com febre sem fonte óbvia são candidatos à avaliação para essa doença, em especial se também apresentarem sopro. Entre os outros grupos de risco estão pacientes com valvulopatias, válvulas artificiais, histórico de procedimentos invasivos recentes e usuários de drogas IV.

A hemocultura é importante para determinar se há microrganismos infecciosos presentes no paciente. Se o resultado for positivo, este torna-se indicativo de endocardite, em especial em pacientes com acometimentos cardíacos prévios. No entanto, não existem dados laboratoriais específicos que confirmem a presença da doença e o exame em si possui um período de preparo considerável, de 3 a 4 semanas. Ademais, em cerca de 2% a 20% dos casos de endocardite, a hemocultura apresenta resultados negativos, causando dilemas diagnósticos e terapêuticos. Tais resultados podem ocorrer como consequência da administração anterior de antibióticos e devido infecções causadas por microrganismos intracelulares obrigatórios, de difícil isolamento, ou que requerem cultivo em meios especializados e de crescimento lento.

A incidência de hemoculturas negativas tem sido reduzida pelo desenvolvimento de técnicas automatizadas de cultivo, sorologias específicas e PCR. Esses métodos permitem uma identificação direta de espécies patogênicas, mesmo em casos de difícil isolamento e reconhecimento, auxiliando no diagnóstico precoce e melhor prognóstico.

O ecocardiograma transtorácico (ETT) é o exame de imagem mais comumente utilizado para casos suspeitos de EI. Apesar de não ser tão sensível quanto o ecocardiograma transesofágico (ETE), ele possui uma sensibilidade significativa e sua execução é menos desconfortável.

Figura 2. Ecocardiograma transesofágico mostrando vegetação (seta) e refluxo mitral (Azevedo et al., 2021).

Em relação aos critérios clínicos para diagnóstico, são amplamente utilizados os critérios de Duke e os critérios modificados de 2015 da European Society of Cardiology (ESC). Ambos são parecidos na sua avaliação, no entanto, a ESC inclui resultados de imagem expandidos como os principais critérios. Esses são:

  • Presença de vegetação, abscesso, pseudo-aneurisma, fístula intracardíaca, perfuração valvar ou aneurisma ou nova deiscência parcial da prótese valvar identificada por ecocardiografia;
  • Verificação de atividade anômala em torno de uma prótese valvar (implantada há > 3 meses) detectada por PET/CT ou SPECT/CT com leucócitos radiomarcados;
  • Lesões paravalvares identificadas por TC cardíaca.

Tratamento

O tratamento farmacológico envolve o uso de antibióticos de maneira prolongada e a eficácia depende diretamente do conhecimento da sensibilidade específica do microrganismo detectado na hemocultura. Abaixo apresentam-se alguns esquemas de tratamento segundo recomendação da European Society of Cardiology (ESC, 2015):

A taxa de necessidade de intervenção cirúrgica na EI permeia os 50% devido ao alto índice de complicações intracardícas. Existe um grande debate entre os especialistas acerca desta abordagem visto que muitas vezes o paciente precisa ser operado ainda em uso de antibióticos, ou seja, em quadro de infecção, o que apresenta um grande risco à vida do indivíduo. Em casos de insuficiência cardíaca aguda (ICA) ou congestiva (ICC) e infecção perivalvar a partir da infecção da valva aórtica, a terapia farmacológica não é suficiente e a cirurgia torna-se a única alternativa.

Em pacientes com alto risco de EI, como em casos de implante de prótese valvar ou intravascular, EI prévia, portadores de doenças cardíacas congênitas e realização de procedimentos que favoreçam o surgimento de bacteremias, indica-se a profilaxia. A manutenção de condições de saúde adequadas é a melhor prevenção para estes indivíduos. Em situações de cirurgia, como transplante cardíaco, ou procedimentos dentários, a antibioterapia profilática pode ser necessária. Os mais utilizados na profilaxia da endocardite são as penicilinas e, em alguns casos, as cefalosporinas. A adoção de medidas preventivas, o diagnóstico precoce, a instituição de terapêutica e o acompanhamento eficaz podem reduzir o impacto da doença sobre a história natural dos cardiopatas de risco, bem como a morbidade e a mortalidade associadas.

Autores, revisores e orientadores

Autora: Julia Resende de Oliveira

Co-autora: Larissa Matheus Silva

Revisor: Iandy Taricone de Souza Mateus

Orientador: Maurício Pinto de Mattos

Co-orientadora: Amanda Aparecida da Silva Machado

Liga Acadêmica: Liga Acadêmica de Clínica Médica da UNESA, campus João Uchoa – instagram: @lacmedunesa

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O texto acima é de total responsabilidade do(s) autor(es) e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


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