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A cardite é a manifestação mais grave da FRA, pois pode associar-se a um aumento de risco de morbimortalidade. É a segunda manifestação mais frequente da FRA, ocorrendo em metade dos pacientes.
A cardite tende a aparecer em fase precoce e, mais frequentemente, é diagnosticada nas três primeiras semanas da fase aguda com duração média em torno de dois meses, caso não tratada.
No surto inicial de FRA a cardite costuma ser branda (podendo, inclusive, ser subclínica), mas na medida em que surtos se sucedem, os novos episódios de cardite tornam-se progressivamente mais graves, deixando sequelas cumulativas.
Como é o acometimento do coração na cardite?
Os três folhetos do coração (pancardite) podem ser afetados: endocárdio, miocárdio e pericárdio. O acometimento endocárdico (valvite) é universal, ao passo que o acometimento dos demais folhetos é variável.
Nesse sentido, o acometimento pericárdico é incomum, raramente ocorre isolado e não evolui para formas constritivas. A pericardite está sempre associada à lesão valvar. O diagnóstico clínico é sugerido pela presença de atrito e/ou derrame pericárdico, abafamento de bulhas, dor ou desconforto precordial. Grandes derrames pericárdicos são infrequentes.
O acometimento do miocárdio (miocardite) está relacionado com abafamento da primeira bulha, galope protodiastólico, cardiomegalia e sinais clínicos de insuficiência cardíaca. Já o acometimento do endocárdio (valvite) é a marca diagnóstica da cardite reumática, atingindo frequentemente as valvas mitral e aórtica.
A fase aguda da lesão de cardite
Na fase aguda, a lesão de maior frequência é a insuficiência mitral, seguida pela insuficiência aórtica.
Vale ressaltar que a insuficiência mitral apresenta maior maior tendência para regressão do que a insuficiência aórtica. As estenoses valvares ocorrem na fase crônica.
Principais sopros de lesões na cardite reumática
Os principais tipos de sopros e lesões encontrados na cardite reumática aguda são:
- Insuficiência mitral aguda (mais comum): sopro holossistólico regurgitativo localizado na ponta do ventrículo esquerdo média/alta frequência (mais nítido com diafragma do estoscópio), grande intensidade (+3 ou mais) e irradiação para axila ou dorso.
- Sopro Carey Coombs: sopro mesodiastólico em ruflar (semelhante a estenose mitral) de baixa frequência (mais nítido com a campânula), e
melhor percepção em decúbito semilateral esquerdo (manobra de Pachon). A diferência com a estenose mitral se dá na ausência de estalido de abertura e hiperfonese de B1. A fisiopatologia do sopro é devido ao turbilhonamento de sangue em folhetos inflamados (valvite) e bastante edemaciados (gerando uma estenose mitral funcional). - Insuficiência aórtica aguda (menos comum): sopro protodiastólico aspirativo e mais audível em foco aórtico acessório (borda esternal esquerda média).
Na cardiopatia reumática crônica as lesões mais comuns são, por ordem de incidência, a estenose mitral pura, dupla lesão mitral (estenose + insuficiência), insuficiência mitral pura e dupla lesão aórtica (estenose + insuficiência).
Como classificar a gravidade da cardite?
A gravidade da cardite pode ser classificada na seguintes categorias:
- Subclínica: exame clínico normal, exames complementares normais (exceto o prolongamento do intervalo PR) e Ecocardiograma com regurgitação (mitral e/ou aórtica) em grau leve, com caractéristicas patológicas.
- Leve: exame clínico com alteração leve (taquicardia desproporcional a febre, abafamento primeira bulha, sopro sistólico mitral, exames complementares normais (exceto o prolongamento do intervalo PR) e Ecocardiograma com regurgitação (mitral e/ou aórtica) em grau leve ou leve/moderado.
- Moderado: exame clínico com alteração mais evidente do que a leve (taquicardia persistente, sopro sistólico mais intenso, mas sem frêmito, sopro de Carey Coombs, sinais incipientes de IC), exames complementares alterados (aumento leve da área cardíaca e congestão
pulmonar discreta no RxT e/ou ESV, alterações do ST e baixa voltagem no ECG) e Ecocardiograma com regurgitação (mitral e/ou aórtica) em
grau leve a moderada. Aumento leve a moderado câmeras esquerdas - Grave: além da cardite moderada + sinais e sintomas de IC, pericardite, arritmias e sopros importantes. Exames complementares bem alterados (cardiomegalia e sinais significativos de congestão pulmonar no RxT e/ou ECG com SVE e/ou SVD) e Ecocardiograma com regurgitação (mitral e/ou aórtica) em grau moderado a importante. Câmeras esquerdas, no mínimo com aumento moderado.
Tratamento da cardite
Está indicado quando o paciente apresenta cardite moderada e grave. Além disso, também é indicado para aqueles que cursam com pericardite (reduz o tempo de evolução e melhora do processo inflamatório).
O esquema de corticoterapia preconizado é com prednisona, 1-2 mg/Kg/dia, via oral (ou o equivalente via endovenosa, na impossibilidade de via oral), sendo a dose máxima de 80 mg/dia.
Em casos especiais onde a cardite associada a lesão valvar grave é refratária ao tratamento clínico padrão, pode necessitar realizar o tratamento cirúrgico na fase aguda.
Paciente com quadro de cardite refratária ao tratamento inicial ou naqueles pacientes que necessitam de cirurgia cardíaca em caráter emergencial, pode-se empregar os glicocorticoides em pulsoterapia (metilprednisolona IV em altas doses).
No caso da cardite leve, não existe consenso, podendo utilizar AINE ou corticoide oral em doses e duração de tratamento menores.
Possíveis complicações
Eritema marginado
Manifestação rara (< 3% dos pacientes) caracterizado por um rash eritematoso maculopapular com bordas nítidas avermelhadas, centro claro, contornos arredondados ou irregulares (figura 1).
As lesões são múltiplas, não dolorosas, não pruriginosas, podendo haver confluência, acarretando em um aspecto serpiginoso, atingindo tronco, abdome e parte interna de membros superiores e inferiores.
As lesões tem as seguintes características:
- Poupam a face
- São fugazes, durando minutos ou horas
- Mudam repetidamente de forma
O quadro clínico apresenta-se no início da doença, porém podem persistir ou recorrer durante meses. Existe uma relação direta com à cardite, porém não necessariamente à forma grave. Não responde ao tratamento com anti-inflamatórios.
Nódulos subcutâneos
Os nódulos subcutâneos são incomuns, acomentendo cerca de 2 a 5% dos pacientes, estando fortemente associado à presença de cardite grave. Apresentam-se como:
- Múltiplos
- Arredondados
- Variados tamanhos
- Firmes
- Móveis
- Não dolorosos
- Recobertos
Podem se localizar sobre proeminências e tendões extensores (cotovelos, punhos, joelhos, tornozelos, região occipital, tendão de Aquiles e coluna vertebral). São mais percebidos pela palpação do que pela inspeção. A manifestação é tardia (uma a duas semanas após as outras manifestações). Além disso, regride rapidamente com o início do tratamento da cardite e não persiste por mais de um mês.
Erradicação do estreptococo
O objetivo principal é reduzir a exposição antigênica do paciente ao estreptococo. Além disso, é preciso impedir a propagação de cepas reumatogênicas na comunidade. A antibioticoterapia não interfere no curso da FRA já estabelecida. Também não diminui o risco de cardite e não existe indicação de amigdalectomia como profilaxia (primária ou secundária) da febre reumática.
Os esquemas terapêuticos são os mesmos para profilaxia primária.
Profilaxia
Sabe-se que o tratamento precoce e adequado das faringoamigdalites estreptocócicas do grupo A com penicilina pode erradicar a infecção e evitar um primeiro surto de FRA em um indivíduo suscetível (profilaxia primária) ou um novo surto em quem já teve a doença anteriormente (profilaxia secundária).
Profilaxia primária
A profilaxia primária é baseada no reconhecimento e tratamento das infecções estreptocócicas, com a finalidade de prevenir o primeiro surto de FR e erradicar o estreptococo.
A eficácia preventiva só é demonstrada se o tratamento for iniciado em até nove dias do início dos sintomas (quanto mais precoce for o início do tratamento, melhor).
A penicilina benzatina continua sendo a droga de escolha para o tratamento desses pacientes. Isso ocorre em virtude da:
- Comprovada suscetibilidade do estreptococo beta-hemolítico do grupo A
- Poucos efeitos colaterais
- Boa aderência ao esquema
- Baixo custo
Profilaxia secundária
A profilaxia secundária consiste na administração contínua de antibiótico para paciente com FR prévia ou cardiopatia reumática comprovada. O objetivo é prevenir colonização ou infecção de via aérea superior pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A. Dessa forma, é possível evitar novos episódios da doença.
O risco FRA em paciente com FR prévia é estimado em 50% após reexposição ao estreptococo beta-hemolítico do grupo A (maior nos primeiros 5 anos após episódio). Contudo, a profilaxia secundária reduz drasticamente esse risco (para < 2%). O antibiótico de primeira escolha é a penicilina benzatina.
Nos casos de alergia à penicilina, a sulfadiazina é a droga de escolha. Pacientes devem fazer controle de hemograma a cada 15 dias nos primeiros dois meses de uso e, posteriormente, a cada 6 meses.
Leucopenia discreta é achado habitual, não justificando interrupção da droga. Nos casos comprovados de alergia à sulfa e à penicilina, a eritromicina deve ser empregada
Duração da profilaxia
A duração da profilaxia depende da idade do paciente, do intervalo do último surto, da presença de cardite no surto inicial, do número de recidivas, da condição social e da gravidade da cardiopatia reumática residual.
Situações especiais
Uso de anticoagulante oral não contraindica a profilaxia com penicilina benzatina. Em vigência de hematoma muscular, deve ser observada a faixa ideal de INR.
Em relação a paciente gestante, pode-se utilizar corticosteroides, penicilinas e eritromicina (estearato). Se apresentar coreia pode realizar tratamento com doses baixas de benzodiazepínicos. A profilaxia secundária deve ser realizada durante todo período gestacional.
Referência bibliográfica
- SANAR RESIDÊNCIA MÉDICA. 2022. Disponível nas apostilas do curso.