Teste do pezinho e teste do olhinho | Colunistas

Índice

A triagem neonatal (TN) são procedimentos realizados em uma população assintomática de recém-nascidos de 0 a 28 dias de vida, com o objetivo de identificar precocemente indivíduos que estão sob risco de desenvolver determinadas doenças ou distúrbios, que se não tratados, podem levar a sérias sequelas e até a morte1,2. Dessa forma, são essenciais a saúde pública, diminuindo a mortalidade infantil, evitando gastos públicos e melhorando significativamente a qualidade de vida e prognóstico desses neonatos.

Quando começou a triagem neonatal?

A ideia de fazer uma triagem inicial surgiu em 1963, pelo Dr. Robert Guthrie nos Estados Unidos, com um método simples e de baixo custo para detectar as concentrações de fenilalanina, ainda na fase pré-sintomática de indivíduos com Fenilcetonúria3. No Brasil, o processo se iniciou em 1976, na cidade de São Paulo, também com triagem para fenilcetonúria e com o procedimento conhecido hoje como “Teste do pezinho”.

Na década de 90, a realização do teste do pezinho se tornou obrigatória e gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e em 2001, foi o criado o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), do Ministério da Saúde, com o objetivo de assegurar o acesso e rastreamento populacional universal em todo território nacional, com identificação precoce das doenças, intervenção em tempo oportuno e acompanhamento permanente desses indivíduos2.

O PNTN preconiza na TN o teste do olhinho, do coraçãozinho, do pezinho e da orelhinha ainda no primeiro mês de vida. Nesse texto, trataremos especificamente do teste do pezinho e teste do olhinho.

Teste do pezinho

                A triagem sanguínea ou “teste do pezinho” foi a primeira medida de triagem implementada e está disponível em todo o Brasil, com 21446 pontos de coletas distribuídos na atenção básica, Hospitais e Maternidades4.

Quando e como é realizado o teste do pezinho?

                O período ideal recomendado para a coleta da primeira amostra é entre o 3°-5° dia de vida do bebê. Esse período se deve ao fato das crianças com menos de 48 horas de vida ainda não terem ingerido proteína suficientes para serem detectadas de forma segura na triagem da fenilcetonúria, podendo assim encontrar falsos resultados “não reagentes” ou normais.

                A coleta é feita pela punção com lancetas apropriadas nas laterais da região plantar do calcanhar, local com pouca possibilidade de atingir o osso. As gotas de sangue dos pés são coletadas no verso do papel-filtro, em regiões demarcada para a coleta (círculos). E após, são secadas, armazenadas por até 48h e enviadas para testagem em laboratório especializado2.

Figura 1: Locais da punção para coleta de sangue no teste do pezinho. Fonte: Manual Técnico de Triagem neonatal do Ministério da Saúde, 2016.
Figura 2: Coleta do teste com o papel filtro e exemplo da coleta adequada. Fonte: Manual Técnico de Triagem neonatal do Ministério da Saúde, 2016.

COLETAS ESPECIAIS

Recém-nascidos (RN) pré-termo, de baixo peso ao nascer ou gravemente enfermos são mais predispostos a resultados falsos positivos e falsos negativos. As recomendações do PNTN são de realizar uma triagem seriada com obtenção de pelo menos 3 amostras em tempos diferentes, com coletas de sangue através de punção venosa periférica (e não no calcanhar), logo ao serem admitidos na UTI neonatal, a segunda coleta entre 48-72h de vida por punção venosa, e a terceira amostra logo à alta do RN ou aos 28 dias dos bebês ainda internados2.

TESTE POSITIVO, O QUE FAZER?

                Resultado positivo nem sempre significa que a criança desenvolverá a doença em questão, e por isso, os testes sempre devem ser repetidos rapidamente e, caso necessário, encaminhados para consulta especializada.

DOENÇAS RASTREADAS NO TESTE DO PEZINHO

                São incluídas hemoglobinopatias e doenças por erro inato do metabolismo, que constituem um grupo heterogêneo de defeitos genéticos que afetam a síntese, degradação, processamento e transporte de moléculas no organismo através da falha enzimática, com acometimento em diferentes intensidades e setores.

                No início do PNTN, os testes rastreavam hipotireoidismo congênito e fenilcetonúria. Ao longo dos anos, novos exames foram inseridos no programa: em 2006, a testagem para hemoglobinopatias; em 2013, de Fibrose Cística; em 2014, de Hiperplasia Adrenal Congênita e deficiência da Biotinidase; e mais recentemente, em 2020, da Toxoplasmose congênita.

  1. Fenilcetonúria
  2. Fibrose Cística
  3. Doença Falciforme e outras hemoglobinopatias
  4. Hipotireoidismo congênito
  5. Hiperplasia adrenal congênita (HAC)
  6. Deficiência da Biotinidase
  7. Toxoplasmose congênita

Fenilcetonúria

                É um erro inato do metabolismo genético, com padrão de herança autossômico recessiva, devido deficiência da enzima hepática fenilalanina-hidroxilase, que converte fenilalanina em tirosina. Assim ocorre o acúmulo do aminoácido fenilalanina no sangue (hiperfenilalaninemia) e consequentemente, no líquor. A incidência estimada no Brasil pelo Ministério da Saúde é de cerca de 1:30000 nascidos vivos5. A fenilalanina é conseguida através de proteínas na dieta, e com isso, o tratamento é realizado com dieta restrita em fenilalanina (dieta difícil, necessitando de bom suporte nutricional e psicológico). Caso não tratada, evoluem com distúrbios do comportamento (agitado ou padrão autista) com atraso global do desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM), deficiência intelectual, convulsões, alterações eletroencefalográficas.

Fibrose Cística (FC)

                Doença genética grave, de herança autossômica recessiva, com acometimento multissistêmico, afetando especialmente os pulmões e o pâncreas. Há uma mutação no gene que codifica a proteína reguladora de condução transmembrana da FC (CFTR), que funciona como um canal de cloro na superfície das membranas celulares. A deficiência ou ausência da CFTR resulta numa alteração da permeabilidade das células epiteliais aos íons de sódio e cloro, ocasionando maior influxo de água e sódio às células, e consequentemente, desidratação e aumento na viscosidade do muco e secreções, facilitando a obstrução das vias aéreas, ductos intrapancreáticos, ductos seminíferos e vias biliares. No Brasil, é estimada uma incidência variável em torno de 1:70006. A triagem é feita com a dosagem de tripsina imunorreativa (IRT), coletando-se uma segunda amostra para a confirmação e avaliação clínica e Teste do suor.

Doença Falciforme e outras hemoglobinopatias

                Doença genética com padrão de herança familiar autossômico recessivo causada por um defeito na estrutura da cadeia beta da hemoglobina, assumindo as hemácias a forma de lua minguante ou falcização quando expostas a situações de estresse fisiológico, como febre alta, baixa oferta de oxigênio, infecções, etc. A hemoglobina predominante em RN é a Hemoglobina fetal (Hb F), e nos adultos a hemoglobina A (padrão HbAA). A Doença Falciforme é quando o fenótipo predominante da hemoglobina é o da Hb S (hemoglobina S) – homozigose SS, mesmo associada a outra hemoglobina variante, apresentando na triagem neonatal “Hb FS”. Indivíduos heterozigotos, “traço falcêmico” ou “traço falciforme” são identificados na triagem com padrão “Hb FAS” (heterozigose AS)2. A incidência estimada no Brasil é de 1:1000 nascidos vivos, e o diagnóstico precoce beneficia por direcionar ações de cuidado que visam a redução da apresentação das crises falcêmicas e morbimortalidade.

Figura 3: Molécula da hemoglobina normal composto por 2 cadeias alfas e 2 cadeias betas. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hemoglobina_r.JPG

Hipotireoidismo congênito

                Incapacidade da glândula tireoide do RN produzir adequadamente seus hormônios tireoidianos (T3 e T4), resultando na redução generalizada dos processos metabólicos. É a principal causa de déficit intelectual prevenível no Brasil. A incidência nacional de 1:3000 a 1:4000 nascidos vivos7. Se não triadas e tratadas precocemente, terão o crescimento e desenvolvimento mental seriamente comprometidos. Os sintomas nos primeiros dias de vida é hipotonia, choro rouco, pele marmorácea/seca, cabelo quebradiço, língua protusa, cianose, icterícia prolongada e anemia. Após resultado positivo inicial no teste do pezinho, deve ser realizada a dosagem do hormônio T4 (total e livre) e do TSH em amostra de sangue venoso, para efetiva confirmação diagnóstica (90% dos casos), os 10% restantes não são detectáveis por TSH até a idade de 2-6 semanas.

Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC)

                Engloba um conjunto de síndromes de herança autossômica recessiva por diferentes deficiências enzimáticas na síntese dos esteroides da glândula adrenal. A mais comum (95% dos casos) é a HAC por deficiência enzima 21-hidroxilase, cuja alteração culmina em níveis de cortisol e aldosterona muito baixos. Como não tem feedback negativo (por não ter cortisol), acumula 17-hidroxiprogesterona, e aumenta desvio da cascata para produção de andrógenos e testosterona, causando ambiguidade genital nas meninas, sendo estas facilmente suspeitadas. Nos meninos, a detecção precoce pelo teste é de suma importância, pois se não diagnosticados, na forma clássica perdedora de sal evoluem rapidamente com distúrbio hidroeletrolítico, desidratação e hipotensão, devido a não formação de mineralocorticoides, como a aldosterona, podendo chegar ao óbito. O diagnóstico da HAC na triagem neonatal é realizado pela quantificação da 17-hidroxiprogesterona, seguidos de testes confirmatórios no soro2.

Figura 5: Cascata da esteroidogênese e deficiência da 21-hidroxilase. Fonte: https://www.nupad.medicina.ufmg.br/wp-content/uploads/2014/10/11-_-Nocoes-Basicas-de-Hiperplasia-Adrenal-Congenita.pdf

Deficiência da Biotinidase

                É uma deficiência metabólica grave, de herança autossômica recessiva, com defeito no metabolismo da biotina, uma das proteínas do complexo B. As manifestações surgem após a sétima semana, com distúrbios neurológicos e cutâneos, como crises epilépticas, hipotonia, microcefalia, atraso no DNPN, microcefalia, alopecia, dermatite e predisposição a infecção. No diagnóstico tardio, pode haver deficiência intelectual, distúrbios visuais e auditivos, atraso motor e de linguagem2. Através da TN, bebês são identificados como suspeitos pela análise da enzima biotina, sendo confirmado o diagnóstico pelo teste quantitativo da atividade de biotinidase.

Toxoplasmose congênita

                Resulta da transmissão transplacentária do protozoário Toxoplasma gondii ao feto, decorrente da infecção primária materna durante a gestação ou próxima ao parto, reativação de infecção prévia em mães imunossuprimidas, ou de uma reinfecção de gestante anteriormente imune com uma nova cepa devido ingestão de água ou alimentos contaminados8.Cerca de 70-85% dos RN infectados são assintomáticos ao nascimento e se não adequadamente tratadas desenvolverão sequelas na infância ou vida adulta, como déficits de aprendizagem e visuais.

APROVADA AMPLIAÇÃO PARA 14 DOENÇAS RASTREADAS PELO TESTE DO PEZINHO

Além desses distúrbios acima, foi aprovado em abril deste ano, 2021, o projeto de Lei 5043/2020, que amplia para 14 o número de grupos de doenças rastreáveis pelo teste do pezinho aplicado pelo SUS, que deverá ser implementada de forma escalonada pelo Ministério da Saúde até maio de 2022. Na primeira etapa, está prevista as doenças já rastreadas. Na segunda etapa, testagens para galactosemias, aminoacidopatias, distúrbios do ciclo da ureia e distúrbios da betaoxidação dos ácidos graxos. Na terceira etapa, doenças lisossômicas (afetam o funcionamento celular); na quarta, imunodeficiências primárias e na quinta e última etapa, atrofia muscular espinhal (degeneração e perda de neurônios da medula da espinha e do tronco cerebral, que resulta em fraqueza muscular progressiva e atrofia)9.

CONFIRA AO VÍDEO: Testes de Triagem Neonatal | Amostra Grátis Aula de Pediatria | Sanar Residência Médica

Teste do Olhinho

O Teste do Reflexo-Vermelho (TRV) ou “teste do olhinho” é um exame rápido, simples, indolor, de baixo custo e alta sensibilidade realizado em todos os recém-nascidos para a rastreamento precoce de enfermidades visuais congênitas que comprometem a transparência do meio ocular e que podem impedir o desenvolvimento visual cortical, causar ambliopia ou deficiência visual (cegueira e baixa visão)10.

Como é feito?

Figura 6: Realização do teste do olhinho no bebê. Fonte: https://www.horedentora.com.br/logo-que-nasce-bebe-deve-fazer-o-teste-do-olhinho-que-pode-detectar-varias-doencas/

O TRV consiste na emissão de luz através de um oftalmoscópio direto nos olhos do RN, a 30cm de distância numa sala escurecida11. O reflexo da luz incidida sobre os olhos da criança produz uma cor avermelhada (ou tons de amarelo ou amarelo-alaranjado) e contínua nos olhos saudáveis, considerada “reflexo vermelho normal” (por isso o nome do teste), e significa que as principais estruturas internas do olho (córnea, câmara anterior, íris, pupila, humor vítreo, cristalino e retina) estão transparentes, permitindo que a luz alcance e retina e reflita.

O reflexo apresenta cor vermelha devido à vascularização da retina e coroide e do epitélio pigmentário. Fenômeno semelhante pode ser observado nas fotografias com flash, em que a pupila do olho fica vermelha. Na presença de alguma opacidade e doença que impeça a chegada da luz á retina e a sua reflexão, o reflexo sofre alterações na coloração, homogeneidade e simetria binocular. Existem três respostas possíveis para o TRV: “reflexo presente”, “reflexo ausente” ou “duvidoso” 11.

Imagem: Resultado normal, duvidoso e ausente do TRV. Disponível em: https://clinprosaude.com.br/teste-do-olhinho/

Doenças que alteram o TRV

                Detecta qualquer alteração que causa obstrução no eixo visual. As principais são a catarata congênita, glaucoma congênito, retinoblastoma, entre outros10.

A importância do teste é devido a visão ser um dos mais importantes sentidos no desenvolvimento físico e cognitivo normal da criança, possibilitando o tratamento no tempo certo e o desenvolvimento normal da visão.

Quando deve ser realizado o teste do olhinho?

                Pode ser realizado ainda na maternidade, antes da alta hospitalar, ou na primeira consulta na atenção básica, e no decorrer das consultas pediátricas de rotina, pelo menos duas a três vezes ao ano, nos três primeiros anos de vida11. Se identificada qualquer alteração, o bebê é encaminhado para avaliação, diagnóstico e conduta com oftalmologista.

                  Todos os anos milhões de brasileirinhos passam pelo PNTN na rede pública. A TN, conhecida popularmente pelo “teste do pezinho”, já é socialmente reconhecida e aceita como uma efetiva ferramenta de prevenção a saúde, e tem a Atenção Básica como porta de entrada ao Sistema de Saúde2.

CONFIRA AO VÍDEO: Teste de triagem neonatal: minuto aula de Pediatria – RM

Autor: Maria Layane Cerqueira

Instagram: @layaneoc


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Posts relacionados:

Referências

  1. Mallmann MB, Tomasi YT, Boing AF. Neonatal screening tests in Brazil: prevalence rates and regional and socioeconomic inequalities. J Pediatr
  2. (Rio J). 2020; 96 (4): 487-494.
  3. Brasil. Triagem neonatal biológica: manual técnico. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/triagem_neonatal_biologica_manual_tecnico.pdf
  4. Leão LL, Aguiar MJB. Triagem neonatal: o que os pediatras deveriam saber. J Pediatr (Rio J). 2008;84(4 Supl):S80-90. Disponível em: http://www.jped.com.br/conteudo/08-84-S80/port.asp
  5. https://portalarquivos.saude.gov.br/campanhas/vivamaissus/triagemneonatal_interna.html
  6. Protocolo Clínico e Diretrizes terapêuticas da Fenilcetonúria, Ministério da Saúde, 2019.
  7. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas da Fibrose Cística – Manifestações pulmonares, SAS-SCTIE/MS, 2017.
  8. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas Hipotireoidismo congênito, SAS/MS, 2015.
  9. Toxoplasmose congênita – Departamento Científico de Neonatologia (2019-2021) • Sociedade Brasileira de Pediatria, n. 6, Julho de 2020.
  10. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/04/29/senado-aprova-ampliacao-da-lista-de-doencas-rastreadas-em-teste-do-pezinho-feito-pelo-sus
  11. Teste do Reflexo Vermelho – Grupo de Trabalho em Oftalmologia Pediátrica • Sociedade Brasileira de Pediatria, n. 1, Setembro de 2018.
  12. Brasil. Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na Infância: detecção e intervenção precoce para prevenção de deficiências visuais – Brasília: Ministério da Saúde, 2013. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_atencao_saude_ocular_infancia.pdf

Compartilhe este artigo:

Pós graduação

Medicina da Dor

Capacitação em diagnóstico e tratamento de dor crônica ou aguda.