Índice
1- O que você precisa saber sobre a associação entre tromboembolismo venoso e câncer?
A trombose venosa profunda (TVP) é caracterizada pela presença de trombo obstruindo parcialmente ou ocluindo o sistema venoso profundo. Sua manifestação mais comum é nos membros inferiores.
Dentre as complicações da doença, estão a insuficiência venosa crônica e o tromboembolismo pulmonar (TEP). A última complicação apresenta um alto índice de mortalidade – cerca de 10 a 15% de indivíduos não tratados com TVP morrem de TEP.
Você deverá adotar estratégias diagnósticas e terapêuticas rápidas, a fim de evitar esse desfecho.
A gênese dos trombos está diretamente relacionada à estase sanguínea, lesão endotelial e estados de hipercoagulabilidade, conhecida como a tríade de Virshow.
São fatores de risco para a doença: trauma cirúrgico e não cirúrgico, idade maior que 40 anos, tromboembolismo venoso prévio ou histórico familiar de TEP, obesidade, veias varicosas, uso de estrogênio, parto, doença pulmonar obstrutiva, imobilização, trombofilias e neoplasias malignas.
Saber identificar os fatores de risco para TVP é condição inicial para que você suspeite da doença e a considere como uma das hipóteses diagnósticas.
As neoplasias malignas induzem um estado de hipercoagulabilidade nos doentes. Pesquisas demonstram que a ativação da trombina e a formação de fibrina são os fatores biológicos que estão relacionados ao aumento de trombose em pacientes com câncer.
A ativação é feita pela liberação de fatores pró-coagulantes pelas células tumorais. Indiretamente, as células endoteliais, os leucócitos e as plaquetas também participam desse processo através das citocinas e da produção de cisteína protease ativadora do fator-X, de glicoproteínas mucinosas e de micropartículas com fator tecidular circulante.
O risco de pacientes com neoplasias malignas desenvolverem TVP vem aumentando significativamente. A incidência anual é de 1:200. O TVP diminui a expectativa de vida desses pacientes e, por isso, a importância de você instituir uma profilaxia adequada, assim como, de estabelecer um diagnóstico e uma conduta terapêutica precoces.
Deve-se considerar também que o TVP pode ser o prenúncio de uma neoplasia não descoberta. Uma investigação mais aprofundada deve ser proposta a pacientes com história clínica, exames físicos e complementares sugestivos.
2- Caso clínico
Paciente masculino, 65 anos, trabalhador da construção civil, etilista e não tabagista. Há um ano, encontrava-se assintomático, quando realizou uma ultrassonografia abdominal como reavaliação periódica da empresa em que trabalhava.
Esse exame teria mostrado a presença de colelitíase. Foi inscrito no sistema de regulação do município para realizar colecistectomia. O aparecimento dos primeiros sintomas ocorreu nos últimos dois meses, quando passou a apresentar dor em hipocôndrio direito, de forte intensidade, do tipo cólica, intermitente, que irradiava para o abdome. Ainda, tenesmo, êmese, náusea, astenia e perda ponderal.
No momento em que esses sintomas surgiram, estava em tratamento de TVP com rivaroxabana. O quadro de trombose iniciou há quatro meses com dor aguda na parte posterior da perna direita, de média intensidade, contínua e que irradiava para toda a extensão da perna. Havia também edema, calor e rubor na região.
O diagnóstico foi confirmado com ecodoppler venoso. No mês seguinte, apresentou o mesmo quadro na perna esquerda. Negou histórico pessoal e familiar de tromboembolismo, assim como de câncer.
O paciente foi admitido em hospital federal para consulta pré-operatória, no entanto, a evolução clínica chamou a atenção do setor de cirurgia que resolveu interná-lo para maior investigação diagnóstica e estabelecimento de nova conduta terapêutica.
No momento da internação, o paciente encontrava-se em bom estado geral, emagrecido (IMC=18), hidratado, eupneico em ar ambiente, hipocorado (+/4+), ictérico (++/4+), normotenso e afebril.
Sem linfonodomegalias. Abdome flácido, com ruídos hidroaéreos presentes, doloroso à palpação superficial e profunda de hipocôndrio direito, sinal de Murphy positivo e sem visceromegalias ou massas palpáveis.
Os membros inferiores estavam edemaciados, com aumento da temperatura, empastamento muscular e com dor à palpação. Os exames solicitados para a investigação mostraram anemia microcítica e hipocrômica, aumento nos níveis de bilirrubinas total e indiretas, gama-glutamil transferase e fosfatase alcalina.
Na tomografia computorizada de abdome, foi observada uma grande massa na topografia da cabeça do pâncreas e dilatação das vias biliares intra e extra-hepáticas.
A TVP no membro inferior direito e depois esquerdo, bem como os sintomas, o exame físico e os exames complementares, levaram a equipe médica ao diagnóstico de câncer de pâncreas e a conduzir o caso dessa forma.
3- Discutindo o caso clínico
A causa mais comum de mortalidade em pacientes com câncer é o tromboembolismo venoso – os riscos são de 5 a 6 vezes maiores que na população em geral.
As características do paciente, do câncer e do tratamento empregado influenciam a alta incidência de TVP naqueles que possuem neoplasia.
Câncer de pâncreas, cérebro, estômago e ovário são mais comumente associados, enquanto o melanoma, câncer de mama e de próstata possuem menor incidência.
Em pacientes que fazem quimioterapia, a incidência é de até 2,2% ao mês, o que faz a quimioterapia ser considerada um fator de risco independente. Os riscos são ainda maiores em doença metastática.
No momento em que foi atendido na emergência, o paciente possuía como fatores de risco conhecidos apenas a idade superior a 60 anos. Parece razoável supor que os elementos que levaram à suspeita de TVP em membro inferior foram os sinais clínicos do paciente.
A hipótese diagnóstica foi confirmada com o ecodoppler venoso.
Com o intuito de facilitar a abordagem inicial do paciente com suspeita de TVP, foi desenvolvido o escore de Wells. Trata-se de um modelo de predição clínica que avalia os sinais e sintomas, fatores de risco e diagnósticos alternativos, com a finalidade de estimar a probabilidade para TVP.
Esse escore deve ser utilizado em combinação com outros meios diagnósticos, como o ecodoppler venoso e a mensuração do D-dímero.
Quando estes dois exames são negativos, é possível descartar com segurança a hipótese de TVP, com exceção de pacientes com câncer e TVP recorrente.
O câncer em atividade é um dos critérios utilizados no escore de Wells para o diagnóstico de TVP. Em casos de TVP idiopático, a presença de neoplasia deve ser melhor investigada quando existem achados positivos na história clínica, no exame físico, nos exames laboratoriais e de imagem.
Isso porque a doença é considerada umas das complicações mais comuns dos pacientes com câncer, sendo responsável por elevada morbidade e mortalidade.
Cerca de 20% de todos os pacientes com TVP possuem neoplasia maligna e essa porcentagem aumenta para 26% casos novos de TVP idiopáticas, o que demonstra a pertinência de se fazer essa associação entre ela e o câncer.
No caso clínico, foi possível perceber que o paciente não possuía uma causa conhecida para o TVP, que acometeu, primeiramente, seu membro inferior direito e depois o esquerdo.
Na história clínica, a dor em hipocôndrio direito do tipo cólica, de forte intensidade, as náuseas e os vômitos corroboravam com a primeira suspeita clínica de colelitíase.
Essa hipótese diagnóstica foi confirmada pela ultrassonografia abdominal, exame considerado operador-dependente. A astenia e a perda ponderal poderiam sugerir uma causa mais grave.
Os exames laboratoriais indicaram aumento dos marcadores de colestase, que não são específicos para a colelitíase, mas sugerem o diagnóstico. Foi a realização de uma tomografia computadorizada abdominal que revelou a presença de tumor na cabeça do pâncreas, porém destaca-se a importância do TVP para que a investigação diagnóstica seja aprofundada e então instituída uma conduta terapêutica mais adequada.
4- O que você não pode esquecer para a prática clínica?
A presença de câncer subjacente deve ser pesquisada em pacientes que foram diagnosticados com TVP sem apresentarem fatores de risco e causa determinada, por causa da prevalência dessa associação.
As neoplasias malignas mais envolvidas em eventos trombolíticos são as de pâncreas, cérebro, estômago e ovário. O que contribui para direcionar a investigação diagnóstica, assim como os achados clínicos e laboratoriais. Em caso de confirmação de malignidade, tratamento e profilaxia adequados para TVP devem ser instituídos para aumentar a expectativa de vida do paciente.
Essa preocupação se justifica em razão da fisiopatologia das neoplasias malignas que induzem um estado de hipercoagulabilidade e do uso de quimioterápicos.