Clínica Médica

Casos clínicos: Diabetes Gestacional | Ligas

Casos clínicos: Diabetes Gestacional | Ligas

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Área: Obstetrícia
Autores: Flávia Cunha e Karine Tomaz
Revisor(a): Dra. Mayara Leisly
Orientador(a): Dra. Mayara Leisly
Liga: Liga Acadêmica de Medicina Generalista – LAMEGE

Apresentação do caso clínico

B.B.S, G3P0A2, de 26 semanas, 34 anos, feminino, negra, casada, auxiliar de farmácia, católica, natural e residente da cidade de Salvador, 2° grau completo, ausência de plano de saúde, chegou ao posto de saúde de sua região para consulta de pré-natal. Portadora de obesidade classe I (índice de massa corporal ou IMC 30 kg/m²), sem história prévia de DM, mas com história familiar positiva para a doença (pai). Relatou como queixa principal sensação de cansaço e sede excessiva e vontade constante de urinar nos últimos 2 meses. Possui uma alimentação com alta taxa de gordura e carboidratos. Era etilista, com consumo de 2 doses por semana, até o início da gestação atual. Nega tabagismo, consumo de drogas ilícitas e uso de medicações durante a gestação. Alega realizar esforço moderado no trabalho como auxiliar em farmácia e ficar a maior parte das 8 horas de trabalho em pé o que gera percepção de inchaço nas pernas. Nega risco de exposição nociva com agentes químicos ou similares. Tem média de 6 horas de sono por noite.

Aos antecedentes obstétricos é multigesta, relata ter sofrido 2 abortos nas tentativas anteriores de engravidar, mas sem histórico de parto.

Sobre os antecedentes ginecológicos relata possuir ciclosmenstruais regulares até o momento da gravidez atual. Nãoutilizade métodos anticoncepcionais farmacológicos, alega uso de preservativo em todas as relações sexuais com parceiros anteriores, no entanto, com o marido não faz uso e, antes da gravidez,utilizava o método de Ogino-Knaus (tabelinha) para controlar as datas do período fértil. Refere não saber se já realizou teste para DSTs, e desconhecesobre a possibilidade de ter síndrome do ovário policístico. Nega cirurgias ginecológicas e narra ter realizado exame preventivo há 2 anos.

Aos antecedentes pessoais nega comorbidades, HAS, cardiopatias, doenças da infância. Relata não saber se já realizou testes glicêmicos. Não possui histórico de alergias, doenças neurológicas, intervenções cirúrgicas, tatuagens e transfusões sanguíneas. Paciente possui sobrepeso classe 1 com cálculo de IMC equivalente a IMC 30 kg/m².

No exame físico, a paciente apresenta um bom estado geral, nutrida, hidratada, alerta, lúcida e orientada no tempo e espaço, sem alteração na fala e linguagem, e na marcha, boa postura, bom desenvolvimento físico, fácies atípicas, atitude indiferente, movimentos involuntários ausentes, biotipo normolíneo, humor eutímico. Normocrômica, anictérica, acianótica, afebril (T= 36,5°), eupneica (FR = 16 ipm), normocárdica (FC = 85 bpm), normotensa (PA = 120 × 70 mmHG); FC   (Fetal):  141  bpm;  medida  uterina  34  cm;  dinâmica   uterina  com  a ausência  de  contrações .  Colo uterino apresentava-se longa; apresentação fetal cefálica, bolsa integra e IMC de 30kg/m².

A paciente recebeu recomendação para realizar os exames complementares que foram glicemia em jejum e o teste de tolerância oral 75g (TTO). Com o recebimento dos exames, foi visto os seguintes resultados: Glicemia em Jejum = 120mg/dL; TTO jejum = 93 mg/dL, 1ªhora = 180 mg/dL e 2ª hora = 155 mg/dL. Com isso, foi feito o diagnóstico de Diabetes Mellitus Gestacional (DMG).

Com essa conclusão, foi indicado o tratamento, começando com uma orientação alimentar com objetivo de manutenção do peso da paciente e o controle da glicemia. Desse modo, ela foi encaminhada para um nutricionista orientar uma dieta balanceada, fracionada, com a mínima presença de alimentos processados, pois possuem alto teor de sódio, além de evitar os carboidratos de rápida absorção e alimentos gordurosos. A dieta foi personalizada com as preferências da paciente de acordo com sua composição corporal. Juntamente com a dieta, foi recomendada a ela a prática de exercício físico, como caminhada, no intuitoque ela possa atingir a meta glicêmica colocada e melhorar sua condição.

Questões para orientar a discussão        

  1. O que significa o termo Diabetes?
  2. Qual diagnóstico mais provável?
  3. Qual é o mecanismo mais provável desse processo?
  4. Quais são os fatores de risco dessa condição?
  5. Quais são as complicações associadas ao processo patológico?
  6. Qual a fluxograma de investigação mais adequado para confirmar o diagnóstico?
  7. Qual o melhor plano de cuidado integral para a paciente?

Respostas

1.  Diabetes se caracteriza como um conjunto de doenças metabólicas as quais devido a uma insuficiência na produção e ou ação da insulina resultam em um quadro de hiperglicemia.

2. Diante do exposto pela paciente e através dos dados coletados durante a anamnese e ao excluir o exame físico a principal hipótese diagnóstica é Diabetes Mellitus Gestacional (DMG).  A DMG é definida pela Organização Mundial da Saúde, como qualquer grau de intolerância à carboidratos (em qualquer grau) que tem início durante a gestação principalmente, entre o segundo e terceiro trimestre ou que é diagnosticada durante esse período e que não preenche os critérios diagnósticos de overt diabetes. Esse conceito é de extrema importância para que não haja dúvida e nem erro durante o planejamento da conduta terapêutica, ou seja, uma vez que a paciente relata nunca ter realizado o teste glicêmico e aos exames pré-natais iniciais de rotina é detectado hiperglicemia, a mesma também é classificada como DMG mesmo queem fases precoces (gestação inferior a 20 semanas).

3.  A fisiopatologia da DMG ainda é controversa e não está totalmente elucidada, no entanto, está provavelmente relacionada com 2 fatores principais: insuficiência de excreção de insulina e resistência insulínica.

Dentre os fatores que envolvem as células beta pancreáticas e sua disfunção, diversos mecanismos estão envolvidos nesse processo. Os altos índices de progesterona encontrados durante a gravidez estãorelacionadosa danos às células beta uma vez que níveis diminuídos de receptores de progesterona estão ligados a maior excreção de insulina por essas células. Outros fatores associados à diminuição insulínica por danos às células beta é a hiperlipidemia, a manutenção prolongada de altos níveis de concentração de ácidos graxos e aumento da ingestão de alimentos. Em algumas mulheres, geralmente aquelas com pré-disposição genética, esse maior suprimento de glicose e ácidos graxos na célula beta podem aumentar o metabolismo celular, levando ao aumento da apoptose das células beta e morte celular.

 Em relação as etapas fisiológicas, temos que existem mudanças principais no metabolismo intermediário com a finalidade de facilitar a obtenção de energia para o feto e precursores do crescimento fetal e placentário.  De maneira inicial, durante a primeira metade da gravidez, no período de maior desenvolvimento embrionário, as mudanças se concentram na armazenagem de energia e nutrientes. Para isso, há um aumento de apetite, percebido pela paciente, e também aumento da sensibilidade à insulina. Essa etapa facilita principalmente a captação de glicose e lipídeos pelo tecido adiposo. À medida que a gravidez avança, uma mudança acentuada no caminho metabólico é observada. Por volta da 24º a 28º semana de gestação observa-se aumento dos níveis glicêmicos e esse fato é decorrente de um aumento à resistência insulínica caracterizado como um mecanismo fisiológico essencial (e ocorre devido à necessidade da oferta de glicose para o feto) causando um aumento compensatório da resposta das células beta do pâncreas (hiperinsulinismo). Essas alterações levam ao aumento da concentração de glicose pós-prandial. Outro ponto importante que intensifica esse processo de resistência à insulina é o fato de alguns hormônios placentários serem contrainsulínicos como: cortisol, lactogênio placentário, prolactina e hormônio do crescimento.

Diante desses fatores fisiológicos e metabólicos, algumas mulheres não conseguem produzir e secretar quantidades adequadas de insulina para manutenção dos níveis basais de glicose na corrente sanguínea, resultando assim, em diabetes mellitus gestacional.

4. Para o desenvolvimento da DMG existem alguns fatores a serem analisados que aumentam as chances de sua ocorrência durante a gestação que são: idade, devido à diminuição da reserva de células beta pancreáticas relacionada à idade; obesidade, pois essa condição leva ao aumento da resistência à insulina, que é ainda mais agravada pela gravidez; fumar, pois também  intensifica a resistência e diminuição da secreção de insulina, no entanto, estudos não encontraram associação significativa entre tabagismo durante a gravidez e risco de DMG; síndrome do ovário policístico, ascendência não-branca, história familiar de diabetes tipo 2, dieta com baixo teor de fibras e alto índice glicêmico, ganho de peso quando jovem e falta de atividade física, pois o exercício eleva a sensibilidade à insulina e pode afetar o peso corporal; relato de DMG  anterior, antecedentes obstétricos de abortamentos de repetição, malformações, morte fetal ou neonatal, macrossomia; baixa estatura (menos 1,5m), ganho excessivo de peso na gravidez atual, deposição central alta de gordura corporal.

5. A manutenção da hiperglicemia durante o período gestacional está associada à macrossomia e hipoglicemia neonatal, hiperbilirrubinemia e hipocalcemia, além de resultados maternos adversos, incluindo hipertensão gestacional, pré-eclâmpsia e cesariana. O estudo Hiperglicemia e Resultados Adversos da Gravidez (HAPO) mostrou que mesmo aumentos leves na glicemia materna aumentam o risco de macrossomia na gestaçãoe bem como resultados relacionados, porém não mostram valores limiares de glicose para esses riscos.

6. As recomendações para teste e interpretação da glicose no primeiro trimestre foram desenvolvidas pela Associação Internacional de Grupos de Estudos sobre Diabetes e Gravidez (IADPSG) e endossadas pela Associação Americana de Diabetes (ADA). Em 2010, o IADPSG decidiu que os critérios diagnósticos do DMG deveriam ser pautados nos resultados do estudo Hyperglycemiaand Adverse PregnancyOutcomes (HAPO), uma pesquisa observacional que tinha como objetivo encontrar um ponto de corte que associasse a hiperglicemia materna a eventos perinatais adversos. Nessa pesquisa HAPO foram propostos, então, novos pontos de corte para o jejum, em 1 e 2 horas, que são ≥ 92 mg/dL, ≥ 180 mg/dL e 153 mg/dL, respectivamente. Em 2013, a OMS incorporou novos dados a esses critérios colocando em evidência que glicemia de jejum ≥ 126 mg/dL ou após sobrecarga > 200 mg/dL seriam critérios diagnósticos para diabetes mellitus franco, e não DMG.

Os critérios para o diagnóstico não são universalmente aceitos. No entanto, no Brasil, em 2017, a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) juntamente com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), e coma Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e como Ministério da Saúde do Brasil elaboraram e definiram uma proposta para rastreamento da DMG.

Nessa proposta ficou definido que a investigação de DMG deve ser feita em todas as gestantes sem diagnóstico prévio de diabetes, e que apresença de fatores associados com maior risco de hiperglicemia na gravidez não deve ser utilizada para fins de rastreamento.

 Dessa forma, na primeira consulta pré-natal, deve ser solicitada glicemia de jejum, com o principal objetivo de detectar o diabetes preexistente. A hiperglicemia inicialmente detectada em qualquer momento da gravidez deve ser categorizada e diferenciada em diabetes mellitus (DM) diagnosticado na gestação (do inglês overt diabetes) ou em DMG. Se o valor encontrado for ≥ 126 mg/dL, será feito o diagnóstico de DM diagnosticado na gestação. Se a glicemia plasmática em jejum for ≥ 92 mg/dL e < 126 mg/dL, será feito o diagnóstico de DMG. Em ambos os casos, deve-se confirmar o resultado com uma segunda dosagem da glicemia de jejum.

Em situações de viabilidade financeira e disponibilidade técnica total, todas as gestantes com glicemia de jejum inferior a 92 mg/dL devem realizar o TOTG (Teste de Tolerância de Glicemia Oral) com 75 g de glicose de 24 a 28 semanas. Em casos de início de pré-natal tardio (superior a 20 semanas) o TOTG deve ser realizado o mais rápido possível.

Em situações de viabilidade financeira e/ou disponibilidade técnica parcial, todas as gestantes devem realizar a glicemia de jejum no início do pré-natal para diagnóstico de DMG e de DM diagnosticado na gestação, e, caso o resultado do exame apresente valores inferiores a 92 mg/dL, antes de 24 semanas de idade gestacional, deve-se repetir a glicemia de jejum de 24 a 28 semanas.

7. Como terapêutica às mulheres diagnosticadas com DMG o controle glicêmico se faz com orientação de uma dieta balanceada associada a restrição aos carboidratos de absorção rápida e gorduras, além de acompanhamento com uma equipe multidisciplinar que inclui: obstetra, nutricionista, endocrinologista, enfermeira, fisioterapeuta, psicóloga e assistente social.  Em relação a dieta ela deve ser individualizada conforme as preferências, necessidades e disponibilidades. O cálculo do valor calórico total da dieta deve ser feito de acordo com o índice de massa corporal (IMC) e deve conter 40 a 55% de carboidratos, 15 a 20% de proteínas e 30 a 40% de gorduras (A), e recomenda-se consumo mínimo diário de 175 g de carboidratos, 71 g de proteínas (1,1 g/kg/dia) e 28 g de fibras, realizando um total máximo de 5 refeições diárias seguindo o fracionamento 7/7: sendo esses 2/7 para almoço e jantar e 1/7 lanches diurnos e noturnos. A recomendação de atividade físicas seguindo as recomendações obstétricas também fazem parte da conduta terapêutica e devem incluir principalmente a modalidade de hidroginástica e caminhada em período de 30 minutos com frequência entre 3 a 5 vezes na semana. Após 2 semanas dessa conduta, caso a paciente não apresente resposta controlada em relação aos níveis glicêmicos (jejum ≥ 95 mg/dL e 1 hora pós-prandial ≥ 140 mg/dL ou 2 horas pós-prandiais ≥ 120 mg/dL) deve-se iniciar a insulinoterapia. O critério de crescimento fetal para início da terapia insulínica é uma alternativaquando a medida da circunferência abdominal fetal for igual ou superior ao percentil 75 em uma ecografia realizada entre a 29ª e a 33ª semanas de gestação. É importante salientar que pacientes com diagnóstico de DM devem ser acompanhadas quinzenalmente durante o pré-natal e após a 32ª semana de idade gestacional esse acompanhamento é semanal.

O DMG exige avaliações de acompanhamento da glicemia pós-partopois eventualmente, a maioria das mulheres com DMG desenvolve diabetes tipo 2 embora as taxas de triagem pós-parto para DM em mulheres com história de DMG sejam baixas. As mulheres devem ser rastreadas com um teste oral de tolerância à glicose (TOTG) entre 4 e 12 semanas após o parto. Aquelas com testes alterados, mas que não são característicos de DM, precisamser examinados anualmente. Aqueles com teste TOTG pós-parto inicialmente normais necessitamser testados novamente pelo menos a cada 3 anos. Os filhos de mulheres com DMG carecem ser monitorados de perto quanto ao desenvolvimento de fatores de risco para diabete (obesidade e estilo de vida sedentário).

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