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Já se perguntou porquê pessoas com obesidade e diabetes tem maior chance de vir a óbito quando contraem a covid-19?
Atualmente estamos sendo bombardeados por informações acerca da infecção pelo coronavírus, também conhecida como SARS-CoV-2, causadora da COrona VIrus Disease (COVID-19) e sua pandemia.
Entre os principais pontos pesquisados e debatidos estão os fatores relacionados à sua gravidade, e apesar de cada vez mais, observamos que ninguém está a salvo, tem chamado atenção a associação do pior prognóstico em paciente mais velhos (especialmente acima de 60 anos), e naqueles com obesidade, diabetes e hipertensão, mesmo nos jovens.
Em parte, é fácil justificar o motivo de idosos com menor reserva funcional evoluírem pior. Mas o que tem de diferente o SARS-CoV-2 das outras infecções virais, que explica a maior magnitude da morbimortalidade em portadores de diabetes e obesidade?
Diabetes
É bem determinado que o diabetes mellitus (DM) é um fator de risco para infecções de maneira geral, já que compromete a resposta imune inata.
Para explicar essa relação cabe usar até o famoso “dilema tostines”- para quem nunca escutou falar é o seguinte: “O biscoito vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?”, mas o que isso tem a ver com o diabético ter mais infecção?!
Simples: aqui também estamos rodando em círculo, cujo eixo é: uma condição de estresse (como a infecção por COVID-19) que desencadeia uma sobrecarga de citocina, aumentando a secreção de hormônios hiperglicemiantes (como glucagon, glicocorticoides e catecolaminas), o que resulta em hiperglicemia e complicações diabéticas, como a própria disfunção de leucócitos, falha na quimiotaxia e fagocitose de monócitos e macrófagos, promovendo um estado pró-inflamatório e disfunção endotelial, que leva à piora da infecção e retroalimentação desse processo, com a síntese ainda mais elevada de citocinas (FIGURA 1)!

No entanto, mesmo todos esses motivos fisiopatológicos, ainda não respondem o questionamento – por que em outros surtos virais, como na pandemia de gripe H1N1 em 2009, na disseminação internacional de 2014 do poliovírus e do ebola, e nas epidemias de zika e dengue no Brasil, não observamos esse mesmo impacto do DM no prognóstico?
O que faz o SARS-CoV-2 ser tão “agressiva” com os diabéticos? Esses pacientes, cuja mortalidade chega a atingir 15%, têm até sete vezes mais chances de evoluir de forma grave. Na Itália, por exemplo, até dois terços dos pacientes na UTI são diabéticos.
O grande problema do portador de DM com o SARS-CoV-2, além dos fatores que já discutimos, é que algumas peculiaridades permitem que o coronavírus tenha maior afinidade pelas células dos diabéticos, com entrada mais eficiente e melhor ligação celular.
Isso se dá pois uma das maneiras que o vírus utiliza-se para infectar o organismo é através da ligação à enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2), e pacientes diabéticos tem maior expressão de ECA2 em células alveolares, miocárdio, rim e pâncreas, o que pode favorecer o aumento letalidade do SARS-CoV-2.
Uma outra especificidade que alinha a fisiopatologia do DM e do COVID-19, é que no DM2 temos maiores níveis de dipeptidil peptidase IV (DPP-IV), enzima que degrada o peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1), o qual favorece a secreção de insulina pelo pâncreas.
Isso justifica a relação do DPPIV e hiperglicemia, mas o que isso tem a ver com o COVID-19?! O SARS-CoV-2 também se liga ao DPP-IV para infectar os alvéolos pulmonares. Sendo assim, quanto mais DPP-IV, assim como o ECA2, mais propício o ambiente se torna para a invasão viral.
O que ainda não sabemos é se intervenções farmacológicas podem influenciar esse mecanismo. Até o momento, nenhum estudo com humanos demonstrou que o uso de inibidores de DPP4, ou a própria insulina, que in vitro reduz a expressão de ECA2, possam prevenir uma pior evolução da doença.
Da mesma maneira, não há comprovação que outras drogas que regulam positivamente a ECA2, levem à um desfecho desfavorável, entre as principais, que in vitro demonstraram esse efeito, temos: alguns agentes hipoglicemiantes, como o agonista de GLP-1 (liraglutida) e tiazolidinedionas (pioglitazona), anti-hipertensivos como inibidores da ECA e, estatinas.
Portanto, é recomendado que pacientes que estiverem bem compensados de suas comorbidades, não devem trocar o tratamento baseado neste achado fisiopatológico, já que é bem estabelecido que o controle adequado das comorbidades, independentes da medicação utilizada, é um fator protetor.
A estratégia terapêutica deve ser formulada com base na classificação clínica, comorbidades coexistentes, idade e outros fatores de risco.
Por mais que saibamos que neste contexto o cuidado do paciente é complexo e exige suporte clínico intensivo, em especial respiratório e hemodinâmico, os níveis glicêmicos são preditores independentes de mortalidade e morbidade em pacientes com síndrome respiratória aguda (SARS), não devendo ser deixado de lado.
Para definição do tratamento levamos em conta duas situações: em pacientes estáveis, mas que necessitam de internação hospitalar, é indicada insulinização subcutânea, utilizando insulina basal (glargina, degludeca, detemir ou NPH) e insulina rápida ou ultrarrápida (regular, aspart, lispro ou glulisina).
Já pacientes críticos (instáveis e em UTI), a melhor opção é insulinoterapia por bomba de infusão endovenosa e controlar a glicemia a cada hora, ajustando a dose com algoritmos validados, com a meta de 140-180 mg/dl (sugestão de uso: https://www.insulinapp-uti.com.br/basico) e, em todos os pacientes internados, suspender medicamentos antidiabéticos orais e demais medicações parenterais para o DM (exceto insulina).
Após a alta hospitalar, é fundamental garantir o seguimento a longo prazo, para reduzir as complicações e a mortalidade relacionadas ao diabetes.
Sendo recomendado, inclusive, o acompanhamento mais rigoroso por pelo menos quatro semanas, janela de menor resposta imune do paciente, a fim de manter a homeostase da glicose e evitar doenças infecciosas oportunistas.
Obesidade
Já a obesidade, ganha progressivamente maior destaque, à medida que o COVID cresce no mundo ocidental. Para se ter uma ideia, dados do serviço de saúde inglês, o NHS, mostram que mais de 70% dos que estão nas UTIs por Covid-19 têm excesso de peso, e quase 40% desses doentes estão na faixa etária abaixo de 60 anos.
E assim como no DM, há múltiplos mecanismos para tal associação que precisamos entender, a fim de otimizar a abordagem desse grupo de risco. Entre os principais temos que:
- O excesso de peso está relacionado à apneia obstrutiva do sono e hipoventilação do paciente obeso, portanto com pior reserva ventilatória e maior fragilidade;
- O acúmulo de gordura visceral promove o aumento da produção de um hormônio chamado leptina, que tem efeito inflamatório, e a diminuição de outro, a adiponectina, que por sua vez, tem efeito anti-inflamatório, consequentemente o que temos é aumento das citocinas, piorando ainda mais a resposta do organismo à infecção do SARS-CoV-2;
- O excesso de adipócitos também gera um ambiente protrombótico, com maior hipóxia celular e apoptose, promovendo a liberação de ácidos graxos na circulação, levando também a uma resposta inflamatória e ativação de vários mecanismos que comprometem a imunidade dos pacientes (bem semelhante ao que ocorre com o DM2);
- Os adipócitos sintetizam ECA2, sendo assim, quanto mais obeso, maior número de adipócitos e maior liberação de ECA2 – como já discutimos, a expressão desta enzima é um dos mecanismos que favorecem a infecção pelo coronavírus;
- Obesos tem maior deficiência de vitamina D e esta vitamina está relacionada com a função imunológica, sendo inclusive recomendado sua suplementação em áreas deficientes;
- Obesos tem maior incidência de DM, portanto, maior risco de todos aqueles fatores já discutidos. Além de maior risco de várias outras comorbidades, principalmente cardiovasculares.
Por todos estes motivos é provável que vejamos uma colisão dessas duas epidemias na saúde pública: a obesidade e o COVID-19 interagindo e sobrecarregando ainda mais nosso sistema de saúde.
Então, qual deve ser a abordagem nutricional nos casos graves de COVID-19?
No momento que o paciente interna, a preocupação deve ser o aporte calórico adequado para o paciente crítico, com necessidade de uma dieta com 25-30kcal/kg, sendo 1,5g de proteína por quilo por dia.
Naqueles pacientes com hipoxemia importante pode ser necessário suplementos hiperproteicos, a fim de evitar a sarcopenia e facilitar o desmame da ventilação mecânica, e caso não se alcance o aporte preconizado, é sugerido complementar com dieta enteral, ou até mesmo parenteral.
Não faz sentido restringir calorias, mesmo em um paciente obeso.
Conclusão
Infelizmente, ainda temos muito a aprender com o COVID-19, mas já evoluímos bastante no entendimento dos fatores relacionados e, consequentemente, na identificação dos grupos de risco.
Neste contexto, é fundamental termos em mente que a idade não deve ser fator prioritário nessa definição, mas sim o grau de fragilidade, e como discutido, havendo muita relevância da obesidade e do DM.
Além disso, os novos conhecimentos na fisiopatologia da doença já estão sendo úteis na implementação de medidas de prevenção mais eficazes e nas pesquisas para o desenvolvimento de novos tratamentos, buscando a erradicação da doença.
Autores: Alexandre Câmara e Lygia Gayoso