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“A embriologia humana ilumina a anatomia.”
Keith L. Moore
O conhecimento da embriogênese do sistema nervoso é fundamental para entendermos as relações que as estruturas fazem entre si e para a compreensão das malformações desse sistema, principalmente porque os defeitos congênitos provocam a maior parte dos óbitos durante o primeiro ano de vida.
Embriologia Geral
O período gestacional humano considerado normal ocorre durante 37 a 42 semanas e pode ser dividido em duas partes: a fase embrionária, entre a 3ª e 8ª semanas, e a fase fetal, da 9ª semana até o nascimento.
Quando ocorre um erro durante as duas primeiras semanas do desenvolvimento, os agentes teratogênicos* geralmente matam o embrião. O período mais crítico para malformações do embrião ocorre quando os tecidos e órgãos estão sendo formados no período embrionário, momento em que a divisão celular, diferenciação e morfogênese estão no seu auge. O período fetal é de crescimento e amadurecimento dos tecidos que foram formados no período embrionário, problemas nessa época não causarão uma malformação, mas uma destruição dos tecidos já formados, como anormalidades morfológicas e funcionais.
*Teratogênicos: “Chamamos de agente teratogênico tudo aquilo capaz de causar dano ao embrião ou feto durante a gravidez. Estes danos podem se refletir como perda da gestação, malformações ou alterações funcionais (restrição de crescimento, por exemplo), ou ainda distúrbios neurocomportamentais, como retardo mental (Sistema de Informações sobre Agentes Teratogênicos – Bahia UFBA. Fonte: SIAT/POA).”

Nós podemos dividir as fases do desenvolvimento embrionário em três partes:
- Segmentação/Clivagem: compreende a fase de divisão celular, representada pela formação do zigoto, blastômero, mórula e blástula;
- Morfogênese: desenvolvimento da forma corporal, momento em que podemos verificar a orientação axial (onde está a cabeça, cauda, lado direito ou esquerdo). Inicia-se na 3ª semana do desenvolvimento e seu primeiro sinal morfológico é o aparecimento da linha primitiva. Durante a fase da gastrulação, o folheto bilaminar torna-se trilaminar (observamos os 3 folhetos embrionários: ectoderma, mesoderma e endoderma);
- Organogênese/Diferenciação: diferenciação celular com funções especializadas para a formação dos tecidos/órgãos. Momento em que ocorre a neurulação. Também observamos o início da formação de outros sistemas, como o cardiovascular.
O sistema nervoso humano é um dos primeiros sistemas a se formar durante a fase de organogênese no período embrionário, mas um dos últimos a terminar de se desenvolver, aproximadamente aos 30 anos de idade pela maturação do córtex frontal.
Neurulação
Durante a evolução, os primeiros neurônios surgiram na superfície do corpo, como uma forma de relacionar o animal ao meio externo. Seguindo esse raciocínio, se levarmos em consideração os três folhetos embrionários (ectoderma, mesoderma e endoderma), o folheto que está em contato com o meio externo é o ectoderma, e será dele que surgirá o sistema nervoso.
A neurulação é o processo envolvido na formação da placa neural e das pregas neurais e no fechamento dessas pregas para formar o tubo neural.
A partir do décimo oitavo (18º) dia de gestação, início da terceira semana, o ectoderma sofre um espaçamento por influência indutora da notocorda, transformando-se na placa neural. Essa placa irá crescer e se curvar para dentro, formando o sulco neural e, posteriormente, a goteira neural, com formato semelhante a uma gota.
Durante essa dobradura, acaba sendo formada uma aba da ectoderme, a crista neural. Essa estrutura será a responsável por dar origem aos elementos do sistema nervoso periférico.
Após formada, a goteira neural irá se fechar no polo superior e formar uma espécie de tubo, o tubo neural, que percorre todo o eixo anteroposterior do embrião, processo conhecido como neurulação. Essa estrutura dará origem ao sistema nervoso central.
O processo de fechamento da gota neural não ocorre simultaneamente em todo o embrião. A gota vai se fechar mais rapidamente nas regiões centrais e mais devagar nas extremidades. As últimas partes do sistema nervoso a se fechar são o neuróporo rostral e o neuróporo caudal, dois orifícios presentes respectivamente na extremidade cranial e caudal do embrião.
O neuróporo cranial se fecha na quarta semana (24º dia), sua falha no fechamento culmina em doenças como a anencefalia. Já o neuróporo caudal se fecha com 26 dias, sua falha no fechamento origina malformações como mielomeningocele.
O fechamento completo do tubo vai ocorrer na quarta semana, quando o neuróporo caudal finalmente se fecha por completo.

A importância do ácido fólico no fechamento do tubo neural
O termo ácido fólico vem de uma palavra em latim que pode ser traduzida como “folhas”, por ter sido primeiramente encontrado e isolado em folhas de espinafre. Nós podemos encontrá-lo também em diversos produtos da dieta, como fígado, leveduras, ovos, feijão e laranjas.
A deficiência de ácido fólico durante a gestação tem se mostrado o principal fator de risco para defeitos do tubo neural identificado até hoje. Anencefalia e espinha bífida correspondem a cerca de 90% de todos os casos de defeitos do tubo neural e os 10% dos casos restantes consistem principalmente em encefalocele. Mulheres gestantes estão mais propensas a desenvolver deficiências desta vitamina, principalmente devido ao aumento da demanda durante a gestação, também por consequência de uma dieta inadequada, hemodiluição fisiológica gestacional e influências hormonais. Por isso, a suplementação periconcepcional e durante a gestação é tão importante, estudos relatam que essa reposição reduz o risco de ocorrência e recorrência para os defeitos do tubo neural em cerca de 50 a 70%.
O ácido fólico atua em diversas áreas do metabolismo, incluindo a da biossíntese de DNA, que naturalmente deve ocorrer durante o desenvolvimento devido às inúmeras divisões celulares. Ainda não se sabe o motivo da carência dessa vitamina trazer tantos transtornos e malformações durante a embriogênese, não conhecemos seu mecanismo central durante a gestação. Especula-se diversos motivos para isso devido ao papel que esse micronutriente desempenha no organismo, como multiplicação celular, aumento dos eritrócitos, alargamento do útero, crescimento da placenta e do feto, atuação como coenzima no metabolismo de aminoácidos (glicina), síntese de purinas e pirimidinas, síntese de ácido nucléico DNA e RNA, além de ser vital para a divisão celular e síntese proteica. Por isso, sua deficiência pode ocasionar alterações na síntese de DNA e alterações cromossômicas.
Devido a sua importância, deve ser prescrita sua suplementação para prevenir os defeitos de fechamento do tubo neural. Em pacientes que não possuem histórico obstétrico de malformações em gestações anteriores, recomenda-se o uso de 400 ug/dia, mas pacientes que possuem esses antecedentes precisam de uma suplementação maior, aproximadamente de 4 mg/dia. As recomendações são de iniciar essa suplementação 12 semanas antes da gestação e continuar até pelo menos os 2 primeiros meses de gravidez, porém como o desenvolvimento do tubo neural ocorre muito cedo, apenas 3 semanas após a fecundação, muitas mulheres não fazem essa suplementação por ainda não saberem que estão grávidas.
Na clínica obstétrica do HC-FMUSP, a suplementação é recomendada durante toda a gestação.
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O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Referências
Livro: Neuroanatomia Funcional – Angelo Machado – 3ª edição.
Livro: Embriologia Clínica – Moore – 10ª edição.
Livro: Neurociências, Desvendando o Sistema Nervoso – Mark F. Bear – 4ª edição.
Livro: Cem Bilhões de Neurônios – Lent – 2ª edição.
Livro: Obstetrícia Básica – Zugaib.
SANTOS, Leonor Maria Pacheco; PEREIRA, Michelle Zanon. Efeito da fortificação com ácido fólico na redução dos defeitos do tubo neural. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 17-24, Jan. 2007. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2007000100003&lng=en&nrm=iso>. Access on 11 Apr. 2021. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007000100003.
Imbard A, Benoist JF, Blom HJ. Neural tube defects, folic acid and methylation. Int J Environ Res Public Health. 2013 Sep 17;10(9):4352-89. doi: 10.3390/ijerph10094352. PMID: 24048206; PMCID: PMC3799525.