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Introdução
Imagine a seguinte situação. Você está atendendo em um hospital; já cansado, está quase terminando mais um plantão de 12 horas no pronto-socorro. Parecia que esse ia ser mais um dia calmo, pacífico e sem acontecimentos. Mas, de repente, algo acontece. Você ouve ao longe um som de ambulância e os internos murmurando algo entre si. Pela porta, entra correndo um paramédico trazendo consigo uma maca com um homem. Ele está claramente confuso, desorientado, com um grande hematoma na região frontal do crânio e impossibilitado de andar. Após uma rápida conversa com os acompanhantes você toma conhecimento da real situação que está prestes a enfrentar: seu paciente foi vítima de um tropeço e bateu a cabeça.
Mais do que comuns, as quedas da própria altura são um problema de saúde pública e estão associadas ao agravo de estados mórbidos prévios ou até mesmo a complicações que colocam em risco a saúde do paciente. As quedas podem ser decorrentes de inúmeros fatores, sejam condições fisiológicas, como oscilações da pressão ou fragilidades ósseas, ou fatores externos, como obstáculos e calçados inapropriados.
O caso que foi descrito anteriormente é muito comum e ocorre todos os dias pelo mundo. Trata-se de um homem de meia-idade que, ao tentar subir um lance de escadas perdeu o equilíbrio, caindo da própria altura e batendo a testa no corrimão. Devido ao inchaço e à impossibilidade de deambular, é possível que tenha lesado o tornozelo. Nesse texto, será discutido sobre como lidar apropriadamente com essa situação, aprendendo o manejo de três ocorrências comuns a esse episódio: a queda propriamente dita, o trauma cranioencefálico e a luxação de tornozelo. Fique ligado!
Avaliação inicial da queda
As quedas da própria altura normalmente são menos prejudiciais que as quedas de alguma altura, embora também não estejam passíveis de promover danos à saúde do indivíduo. Normalmente as quedas não trazem grandes problemas e podem ser consideradas até banais. Em outros casos, o resultado final está intrinsecamente ligado às consequências da queda: bater com a cabeça, impactar ou fraturar um osso, distender um músculo etc. Em casos seletos e conforme suas consequências, as quedas da própria altura podem inclusive ser letais.
Apesar de essas quedas ocorrerem mais em idosos, pacientes epilépticos e usuários de drogas, todas as pessoas podem estar sujeitas a elas. Uma queda pode ser abrupta, sem nenhum aviso prévio ou ser precedida por algumas condições de saúde. Esta última permite que o indivíduo tome ações que evitem que ela ocorra, algo que não é possível caso apenas tenha acontecido um breve momento de desatenção. Por isso, pessoas que são vítimas de tombos repentinos estão mais sujeitas a sofrerem lesões graves do que aquelas cuja queda apresenta manifestação prévia.
Sempre que o médico tem contato com um paciente vítima de algum tipo de trauma, é preconizado que siga todos os passos descritos pelo ATLS no chamado ABCDE do trauma. O ABCDE do trauma é uma série de precauções visando garantir o bem-estar do paciente após uma situação de risco. Esse procedimento não precisa ser realizado somente por profissionais da área da saúde, uma vez que um amplo conhecimento sobre os mecanismos do trauma não é necessário para estar apto a colocá-lo em prática.
Criado em meados da década de 70, esse protocolo é amplamente reconhecido na medicina, uma vez que sua eficiência é incontestável. Cada letra do ABCDE representa um aparelho e sistema que devem ser cuidadosamente analisados, ajudando assim a determinar quais as consequências e prognósticos após um trauma de variadas intensidades.

Fonte: https://www.passeidireto.com/arquivo/50505619/abcde-do-trauma
Como tudo na medicina, uma anamnese bem feita é fundamental para se chegar a um diagnóstico preciso sobre dada enfermidade. Assim como nesse caso do início do texto, nem sempre o paciente estará apto a prestar as devidas explicações da causa de sua condição, portanto é sempre bom contar com a ajuda dos acompanhantes ou do serviço hospitalar. Por meio desse contato, é possível, por exemplo, determinar se a queda foi decorrente de alguma síncope ou se foi sua causadora.
Ademais, ter conhecimento sobre as medicações que o paciente faz uso, como anticoagulantes, a história patológica pregressa e as condições que levaram à queda irão ajudar a estreitar o diagnóstico e maximizar o sucesso do tratamento.
Manejo do trauma cranioencefálico (TCE)
O cérebro é um dos maiores e mais complexos órgãos do corpo humano. É composto por mais de 100 bilhões de neurônios que se comunicam, estando, por isso, protegido por um compartimento ósseo resistente de volume constante, o crânio.
Impactos abruptos na região encefálica costumam cursar com uma redução na capacidade de resposta do indivíduo. Na medicina, o nível de consciência basicamente refere-se ao estado de lucidez e alerta em que a pessoa se encontra, seu potencial de reconhecimento da realidade e a capacidade de resposta a determinados estímulos. Quando o paciente, por qualquer motivo que seja, encontra-se privado de seu estado de alerta ou incapaz de responder a determinados estímulos, temos uma redução do nível de consciência.
A escala de Glasgow
Durante uma emergência médica, a redução do estado de consciência do paciente é um quadro muito comum e que frequentemente acarreta em altas taxas de mortalidade. Sempre que alguém cursa com alterações da percepção ou estado de alerta, deve-se suspeitar que algo está errado. Para que seja possível determinar o estado de consciência do paciente, é muito comum a utilização de uma escala padronizada, conhecida como a escala de coma de Glasgow.
Desenvolvida na Universidade de Glasgow, na Escócia, a escala de Glasgow é utilizada para avaliar as consequências trauma em região cranioencefálica, possibilitando uma identificação de injúrias neurológicas, se há ou não rebaixamento do nível de consciência e uma possível determinação de um prognóstico.
Por meio da análise minuciosa do comportamento, a escala de Glasgow permite determinar o nível de consciência da pessoa. Normalmente, faz-se isso por meio de sua reatividade perante dados estímulos, em que se notam 3 parâmetros: abertura ocular, reação motora e resposta verbal.
A determinação da escala de Glasgow deve ser efetivada caso haja a suspeita do TCE e deve ser feita até 6 horas após o trauma. Na imagem abaixo, descrevem-se os parâmetros da escala e como são devidamente contabilizados os pontos.

Fonte: http://itafono.blogspot.com/2013/01/escala-de-coma-de-glasgow_30.html
Em cada um dos 3 parâmetros, atribui-se um valor entre 3 e 15. Valores perto de 15 são indicativos de um nível de consciência apropriado e escores inferiores a 8 são observados durante o coma. Um escore de 3 normalmente é um forte indicativo de morte cerebral, sendo necessários exames complementares para confirmá-la.
Exames complementares
Embora o trauma cranioencefálico apresente um conjunto de sinais e sintomas característicos, normalmente é necessário que sejam feitos diversos exames para concluir o diagnóstico. Os exames mais comuns incluem tomografia computadorizada, radiografia, ressonância magnética e, em alguns casos, uma punção lombar, e devem ser aplicados conforme as recomendações do ATLS e clínica do paciente.
Os exames de imagens, como é o caso do raio-x e da tomografia de crânio, são peças valiosas para determinar se as complicações do trauma estão passíveis ou não de intervenção cirúrgica. No RX, a observação minuciosa da integridade óssea pode revelar fraturas que, a princípio, poderiam passar despercebidas durante o exame físico. Fraturas cranianas normalmente são indicativas de traumas de grande energia, e requerem intervenção do cirurgião bucomaxilofacial. Já a tomografia computadorizada é um exame que nem sempre está disponível em todos os lugares, porém é mais sensível e possui maior capacidade de identificar condições que acometem o encéfalo. Exemplos de complicações do TCE, e que merecem atenção especial na interpretação dos exames de imagem, são os hematomas, que possuem sinais radiológicos muito característicos.

Fonte: https://www.studyblue.com/notes/note/n/10-vascular-events/deck/7891462
Ademais, como o crânio é um espaço restrito e confinado, ele limita qualquer expansão que o encéfalo tente realizar. Por isso, em caso de TCE, é preciso estar atento para episódios em que a pressão intracraniana se eleve para além dos valores de referência acima dos 20 mmHg, sendo necessário avaliá-la periodicamente por meio da análise da pressão liquórica.
Entorse de tornozelo
Uma entorse pode ser definida como uma lesão ligamentar por estiramento ou rompimento, sendo mais comum em populações ativas. Essas lesões nos ligamentos ou tendões do tornozelo comumente acontecem durante eventos esportivos, principalmente em atletas amadores, ou até mesmo em meio a atividades do cotidiano como tomar banho.
O mecanismo da lesão ligamentar no tornozelo ocorre em 85% dos casos por meio de uma supinação com inversão plantar (entorse lateral), podendo também ser resultado de uma eversão abrupta do tornozelo (entorse medial).
Anatomia
Anatomicamente, a região do tornozelo é composta por inúmeros ligamentos e articulações, compondo uma complexa trama fibrosa que permite à estrutura sustentar o peso do corpo com grande estabilidade. A articulação talocrural localiza-se em meio às extremidades da tíbia e da fíbula com a porção superior do tálus.
Mais comumente acometido nas entorses de tornozelo, o ligamento talofibular anterior fixa, em sentido anteromedial, o maléolo lateral ao tálus. Junto a ele, localizam-se no compartimento lateral do pé os ligamentos talofibular posterior e calcaneofibular.

Fonte: https://medhyps.com/pt/pages/2887
Em sua face medial, a capsula articular é estabilizada pelo robusto ligamento colateral medial, também conhecido como ligamento deltoide, pelo seu formato característico, fixando-se nos ossos do pé através dos ligamentos tibionavicular, tibiocalcâneo e tibiotalares anterior e posterior. Juntos, esses 5 ligamentos contribuem para impedir a subluxação articular, promovendo estabilidade ao conjunto musculoesquelético.

Fonte: https://singaporeosteopathy.com/tag/ligament/
Diagnóstico
Um exame físico primoroso deve abarcar a palpação de todos os ligamentos anteriormente citados, começando sempre pelos pontos menos doloridos e finalizando com aqueles mais sensíveis ao toque. Outros pontos, como a sindesmose tibiofibular (intersecção da tíbia com a fíbula, pouco acima do maléolo lateral) e a base do quinto metatarso, por serem pontos suscetíveis a fraturas, também merecem atenção especial durante o exame físico.
Associados à palpação, exames de imagem, como a ressonância magnética e o raio-x, possuem grande sensibilidade ao identificar pontos de ruptura ligamentar ou fratura óssea. Quando a radiografia for indicada, devem sempre ser utilizadas ao menos duas incidências, sendo elas a anteroposterior e a de perfil.
Tratamento
Em sua grande maioria, deve-se optar por um tratamento conservador para a entorse de tornozelo, sendo indicado a intervenção cirúrgica apenas para alguns casos específicos ou rescindidos. O objetivo primário do tratamento consiste na manutenção da amplitude dos movimentos, a redução da dor e edema e o retorno precoce das atividades diárias.
Existe uma abordagem dividida em três etapas, comum ao tratamento de todos os graus de torção no tornozelo.
- Fase inicial: deve ser adotada logo após o trauma e envolve repouso, proteção do tornozelo e controle da carga aplicada, além de medidas que visem a redução do inchaço, como administração de gelo e uso de anti-inflamatórios (AINEs). A imobilização por meio de uma tala gessada ou órtese também é fundamental.
- Acompanhamento: nesse momento, deve-se prezar pela restauração da amplitude de movimento e flexibilidade, algo que pode ser feito por meio de sessões de fisioterapia ou atuação de uma equipe multidisciplinar.
- Prevenção: exercícios de manutenção e evitar a rotação ou torção do tornozelo são recomendados nessa fase. O período em que essa fase se estende dependerá do grau da entorse.
No tratamento, o profissional pode receitar medicações para controle da dor, que deverão ser administrados conforme a evolução do quadro e necessidade individual do paciente.
Conclusão
Ufa, quanta coisa! Lendo esse artigo, você é capaz de perceber como uma simples queda pode impactar de maneira negativa a vida de um paciente e exige atenção redobrada do médico. Há uma infinidade de fatores que podem contribuir para a piora do quadro clínico do paciente, portanto todo cuidado é pouco.
Ao cair da própria altura, uma anamnese bem estruturada é primordial para compreender quais os fatores que desencadearam a queda. Descobrir se o paciente faz uso de alguma medicação ou pertence a um grupo de risco são informações valiosas para estreitar o diagnóstico.
O trauma do crânio, a princípio, é o evento que parece oferecer maior risco ao paciente. Avaliar o nível de consciência do paciente, assim como seus exames de imagem, ajudam a determinar a evolução do paciente e a necessidade ou não de cirurgia.
Por fim e não menos importante, a capacidade de locomoção do paciente também influencia diretamente na sua qualidade de vida. Por isso, estar sempre atualizado quanto aos protocolos mais recentes para manejo de entorses ou fraturas, além de prestar uma atenção especial à palpação e aos exames radiológicos.
No caso do paciente, por sorte não aconteceu nada mais grave do que um machucado na cabeça e um calcanhar torcido. Ao exame físico, apresentava um total de 14 na escala de Glasgow, com exames de imagem normais e uma ruptura do ligamento talofibular anterior, que irá melhorar após algumas sessões de fisioterapia. Graças ao seu pensamento rápido e ações decisivas, o paciente está bem e já pode voltar para casa.
O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.
Referências bibliográficas
Neurologia para o clínico geral – Rodrigues MM, Bertolucci PHF. Neurologia para o clínico geral. 1 Edição. Editora Manole, 2014.
Propedêutica Médica – Lynn S. Bickley. 11ª Edição. 2015. Editora Guanabara Koogan.
Semiologia Médica – Celmo Celeno Porto – 7ª Edição. 2013. Editora Guanabara Koogan.
Queda da própria altura – https://www.bing.com/search?q=queda+pr%c3%b3pria+altura&qs=SC&pq=quedas+propri&sc=2-13&cvid=7370DF54E4B3437EAA7AAD6BF86B8A46&FORM=QBRE&sp=1
Advanced Trauma Life Suport (ATLS) – AMERICAN COLLEGE OF SURGIONS COMMITTEE ON TRAUMA. Advanced Trauma Life Suport – ATLS. 8 ed., 2009.