Índice
1- Uma situação familiar
Você se encontra mais uma vez de plantão noturno na enfermaria, terminando suas anotações em prontuário quando o som de gritos ao fim do corredor, e o inconfundível alarme estridente ressoa: Parada cardiorrespiratória (PCR).
Dirigindo-se prontamente ao quarto, você se vê diante do paciente de um de seus colegas internado há 3 dias para o tratamento de uma prostatite, o senhor de 65 anos encontra-se cianótico em seu leito, olhos abertos, sem movimento. O que se segue só poderia ser descrito como caos controlado.
A sequência é quase medular. Checagem de pulso central. Ausente. A equipe se paramenta, enquanto um massageia, outro já busca o carrinho de parada, um dos enfermeiros, remove os acompanhantes.
Checagem de ritmo elétrico, Fibrilação ventricular, choque, acesso, adrenalina, avaliação de qualidade da massagem cardíaca, nova checagem de ritmo, choque, FV, amiodarona, via aérea definitiva…
O tempo passa num piscar de olhos, a equipe compenetrada, quando o Time de Resposta Rápida entra no quarto prontos para auxiliar no manejo do caso.
Você resume o caso: 11 minutos de parada, ritmo chocável durante todo o período, 2 doses de adrenalina, 2 de amiodarona, via aérea definitiva, e vocês estão próximos a terminar este ciclo ao checar o pulso novamente.
Um dos colegas pergunta então: “E o bicarbonato?”
2- “E o bicarbonato?”
2.1 – E por que não?
Durante a reanimação cardiopulmonar, o organismo entra em um estado de baixa perfusão sistêmica, com metabolismo anaeróbio (e consequente acúmulo de ácido lático), déficit ventilatório dificultando eliminação de CO2, resultando em acidemia progressiva, que por sua vez levará à disfunção metabólica em diversos órgãos e sistemas (dentre elas, menor resposta a catecolaminas, menor contratilidade miocárdica e vasodilatação arterial).1
Este processo é influenciado pela duração da PCR, grau de perfusão conseguido pela massagem cardíaca, e conteúdo arterial de oxigênio que se consegue restabelecer pela via aérea estabelecida. 2
O raciocínio, portanto, parece bastante simples: se o pH cai, levando a um ciclo vicioso de alterações metabólicas, basta aumentar o pH através de infusão endovenosa de bicarbonato exógeno até que se reverta o estado de colapso cardiorrespiratório.
Seguindo esta lógica, desde os anos 60, após resultados promissores em modelos de PCR em cães, esforços foram realizados no sentido de combater a acidose da parada, seja através de infusão de bicarbonato, seja através de hiperventilação.3
Desta forma o seu professor na faculdade pode ter lido o “Standards and Guidelines for CPR and Emergency Cardiac Care” de 1980, que preconizava o uso empírico de bicarbonato na PCR.4
2.2 – Por que nem sempre?
Com o tempo surgiram evidências, no entanto de um efeito paradoxal na infusão do bicarbonato de sódio (NaHCO3).
Numa condição de baixa perfusão, a capacidade de difusão pelos tecidos se torna fator preponderante para sua capacidade de entrar e alterar o pH nos tecidos.
Se lembrarmos bem da equação de Henderson-Hasselbach (lááá dos primeiros anos da faculdade!!), existe um equilíbrio ácido-base que pode ser representado assim:
H++HCO3– ↔ H2CO3 ↔ CO2+H20, ou pela fórmula pH = 6.1 + log (HCO3–/0.03 PaCO2).
Quanto mais bicarbonato, portanto, mais CO2 gerado. O problema é que o gás carbônico (CO2 – ou ácido carbônico em sua forma diluída na água) tem uma capacidade de difusão muito maior que a do bicarbonato (HCO3–), o que leva a um pH intracelular ainda mais baixo (portanto, ácido), e ao mesmo tempo a alcalose extracelular desloca a curva de saturação da oxihemoglobina, diminuindo a liberação de oxigênio para os tecidos.
Soma-se a isso o efeito arritmogênico, efeito vasodilatador sistêmico que pode dificultar retorno à circulação espontânea, hipocalemia, hipocalcemia, hipernatremia, hiperosmolaridade, diminuição do limiar para fibrilação ventricular, se a alcalose for exagerada.5
Outro problema: Embora a acidose diminua a resposta às catecolaminas, a infusão no mesmo acesso do bicarbonato e catecolaminas (como a adrenalina) pode provocar a inativação destas últimas.
Gradualmente foram sendo publicados estudos observando o desfecho clínico de pacientes que receberam bicarbonato de sódio na reanimação cardiopulmonar, alguns desfavoráveis ou neutros.6
2.3 – E agora, o que fazer?
Em sua atualização mais recente do protocolo de suporte avançado de vida (ACLS) de 20197, a American Heart Association manteve o mesmo posicionamento adotado desde 20102, que baseado na evidência existente na literatura 8, 9, incluindo o bicarbonato entre as intervenções que não devem ter seu uso rotineiro recomendado durante a parada cardíaca.
3 – Quando usar o bicarbonato então?
Apesar do uso geral ser desencorajado, em algumas circunstâncias especiais como na hipercalemia, overdose por tricíclicos e na acidose metabólica pré-existente, há indícios fracos de algum benefício.
E extrapola-se que seja útil também no tratamento da intoxicação por cocaína.
3.1 – Hipercalemia
A elevação do potássio pode levar a arritmias cardíacas e PCR. A prioridade é estabilização da membrana das células miocárdicas com bolus de gluconato ou cloridrato de cálcio, seguida de medidas de “shift” (troca de potássio para o meio intracelular) que diminuirão rapidamente níveis séricos de potássio, dentre elas a infusão de bicarbonato de sódio endovenoso, até que a parada seja revertida e medidas que promovam a excreção do potássio possam ser iniciadas.
3.2 – Intoxicação por tricíclicos
Existem evidências que em intoxicações graves, a elevação do nível sérico de sódio e a elevação de pH podem ser benéficas (ambas alcançadas pela infusão de bicarbonato de sódio) para a restauração do QRS que estará alargado bem como a estabilidade hemodinâmica (monitorando para não permitir Na >155 ou pH>7,55).
Em caso de parada cardíaca segue-se o mesmo racional.
3.3 – Acidemia pré-existente
Na acidose metabólica aguda, em caso de acidemia grave com pH<7,1 (a partir do qual ocorrem depressão miocárdica, inibição do efeito das catecolaminas e arritmias), ou pH<7,2 com injúria renal aguda grave (aumento >2x creatinina basal ou oligúria)10, existem evidências controversas de benefício clínico em humanos com a reposição de bicarbonato.
Extrapola-se também para casos de PCR em paciente com acidose metabólica prévia.
3.4 – Intoxicação por cocaína
A overdose por uso de cocaínagera neurotoxicidade e cardiotoxicidade, por meio da ativação do sistema nervoso central autonômico.
O tratamento de primeira linha envolve uso de alfa-bloqueadores, benzodiazepínicos, bloqueadores de canal de cálcio, morfina ou nitroglicerina sublingual na intoxicação, com preferência por benzodiazepínicos, nitroglicerina ou morfina em caso de desconforto torácico, pela capacidade de reverter a vasoconstrição coronária, ao passo que betabloqueadores podem piorar os sintomas.
Extrapolando a conduta do tratamento da intoxicação por tricíclicos e anti-arrítmicos classe 1c, que também geram taquiarritmias de complexo QRS alargado por inibição de canais de sódio, se arritmia ventricular considera-se infusão de bicarbonato de sódio adjuvante.
3.5 – Quanto de bicarbonato dar?
A dose habitual recomendada é de 1 mEq/kg (onde numa solução padrão de bicarbonato de sódio 8,4%, cada mL equivale a 1 mEq, ou seja, 1mL/kg), com possibilidade de ajuste de dose, conforme concentração de bicarbonato e tamanho do Base Excess (negativo) na gasometria, se disponível.
O déficit de bicarbonato pode ser calculado através de diversas fórmulas (como descritos neste link), uma das mais simples a seguir: 0,4 x Peso(kg) x (24-Bic). 11
3.6 – Potenciais armadilhas (“Pitfalls”)12
- Não utilizar bicarbonato/soluções alcalinas nas mesmas vias/acessos que as drogas adrenérgicas, pois estas últimas serão neutralizadas.
- A infusão de bicarbonato pode gerar um aumento transitório da PetCO2 no capnógrafo que pode ser confundida por melhora da qualidade das compressões torácicas ou retorno à circulação espontânea.
- Na ausência de acesso endovenoso ou intraósseo, algumas medicações podem ser infundidas via endotraqueal, porém estas não incluem o bicarbonato de sódio que pode lesionar as vias aéreas.
4 – Os 5Hs/5Ts
Você responde que não foi administrado bicarbonato até agora, mas aproveita a chegada da equipe de apoio para realizar uma tarefa importante no atendimento à PCR em equipe: avaliação de histórico do paciente através do prontuário ou por meio dos acompanhantes das causas tratáveis de parada cardiorrespiratória, os 5Hs/5Ts, bem como revisão do histórico de uso de medicações/drogas de abuso.13
5Hs | 5Ts |
Hipóxia | Toxinas |
Hipovolemia | Tamponamento (cardíaco) |
Hidrogênio (acidose) | Tensão (pneumotórax) |
Hipo / hipercalemia | Trombose (pulmonar) |
Hipotermia | Trombose (coronária) |
O paciente vinha internado há 3 dias, sem histórico de depressão, ou abuso de drogas ilícitas o que tornava a possibilidade de intoxicação remota.
Ele vinha apresentando melhora de parâmetros infecciosos, no entanto no tratamento da prostatite devido ao efeito pós-renal do edema prostático e pelo insulto renal da própria sepse, o mesmo vinha com a função renal em piora.
A rotina de exames foi coletada no fim da tarde, e ao checar os resultados liberados há pouco: creatinina sérica de 3,8 e potássio sérico de 6,4.
Você logo avisa a equipe e são administrados 2g de gluconato de cálcio e 80mL (peso estimado do paciente de 80kg, portanto, 1mEq/kg) de Bicarbonato de Sódio 8,4% em bolus, a reanimação ainda dura mais 2 ciclos, quando paciente reverte para ritmo elétrico organizado, e ao checar o pulso carotídeo presente.
Imediatamente paciente foi reacessado clinicamente, coletados novos exames laboratoriais, feito eletrocardiograma e RX tórax, e transferido para a UTI onde foi dada continuidade aos cuidados do paciente. E assim seguiu mais um plantão na enfermaria.
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