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Abortamento seguro: implicações na saúde pública

Abortamento seguro: implicações na saúde pública

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Imagem de perfil de Luiza Riccio

Tudo que você precisa saber sobre o abortamento seguro e a implicação disso na saúde pública!

Segundo a Organização Mundial de Saúde, 73 milhões de abortamentos são realizados, por ano, no mundo. Desse total, 45% deles em condições inadequadas – uma consequência direta da sua criminalização.

É importante ressaltar que abortamento é o termo adequado para a interrupção de uma gestação abaixo de 20-22 semanas, enquanto a palavra “aborto” se refere ao produto conceptual eliminado no abortamento.

Importância da discussão sobre o direito ao abortamento seguro

 Ao abordarmos esse assunto polêmico, é de extrema importância deixar claro que falar sobre descriminalização ou legalização é uma questão de saúde pública, e nada tem a ver com ser contra ou a favor do abortamento em si. 

O que vemos, na prática clínica, é que a maioria das mulheres que deseja interromper uma gestação não deixa de fazê-lo pelo fato de o procedimento ser ilegal. 

No Brasil, o abismo da diferença social está refletido no acesso ao abortamento seguro: mulheres das classes média e alta realizam o procedimento com segurança, mesmo na clandestinidade, em clínicas e hospitais (que têm um custo elevado).

Porém, a maioria da população – composta por mulheres pobres – se expõe aos riscos do abortamento inseguro em condições inadequadas.

 Na América Latina, estima-se que, a cada quatro interrupções voluntárias da gravidez, três são realizadas clandestinamente, por pessoas sem qualquer qualificação. 

As consequências são catastróficas: cerca de 47 mil mulheres morrem, por ano, no mundo, por complicações do abortamento inseguro. 

Caso dos Estados Unidos reacendeu a discussão sobre a criminalização do abortamento

Em maio de 2022, a criminalização do abortamento voltou a ser discutido em escala mundial. Isso aconteceu diante da divulgação do rascunho de um documento elaborado por um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos. Documento que poderia resultar na revogação da decisão que legalizou o abortamento neste país, há quase 50 anos –

Há uma votação prevista para acontecer em julho de 2022. Um resultado favorável à criminalização do abortamento nos Estados Unidos poderá representar um enorme retrocesso. Isso tanto para a saúde pública quanto para os direitos das mulheres. 

Uma decisão como esta pode ir de encontro às recentes ocorrências de legalização na Argentina (2020), e descriminalização no Chile (2021), na Coréia do Sul (2021) e na Colômbia (2022). 

Vale ressaltar que há uma diferença entre descriminalização e legalização.

  • Descriminalização: o ato deixa de ser um crime;
  • Legalização, que caracteriza uma prática regulamentada – incluindo-se uma idade gestacional limite para a sua realização – e apoiada pelo Estado, que tem o dever de assegurar o acesso à realização do procedimento nos serviços de saúde pública.

A legalização é mais efetiva para os direitos das mulheres, pois a prática torna-se automaticamente regulamentada e descriminalizada. 

Um estudo publicado no The Lancet (2019) demonstrou uma associação entre uma maior flexibilidade das leis sobre o abortamento e a diminuição das taxas de mortalidade materna.

Na África do Sul, por exemplo, houve uma queda de 91% no número de mortes associadas ao abortamento, após a introdução de leis para garantir o procedimento seguro. 

Riscos associados ao abortamento em condições inadequadas

Em condições inadequadas, fora de um serviço de saúde, o abortamento pode ter consequências catastróficas. O risco de morte materna está associado, principalmente, às complicações hemorrágicas e infecciosas. 

O abortamento medicamentoso – através de drogas como misoprostol e mifepristone – é considerado relativamente seguro, com baixas taxas de complicações.

No entanto, essa não é a realidade da maioria das mulheres brasileiras. Afinal, mesmo quando adquiridas clandestinamente, as medicações têm um custo elevado.

Neste contexto, frequentemente nos deparamos com práticas de altíssimo risco, como:

  •  introdução de objetos no útero; 
  • manipulação dos órgãos do trato genital por pessoas que não são profissionais de saúde, utilizando materiais sem a devida esterilização; 
  • uso de substâncias tóxicas; 
  • ou traumas provocados. 

Essas práticas causam hemorragias e infecções graves, que ameaçam a vida ou o futuro reprodutivo da mulher.

 Muitas vezes, as pacientes chegam ao serviço de saúde com infecções em estágio muito avançado, negam que o abortamento foi provocado, ou se recusam a fornecer informações sobre o procedimento a que foram submetidas, retardando o diagnóstico e o início do tratamento adequado: um reflexo direto da criminalização do abortamento no Brasil.

O que fazer em casos de aborto irregular?

Diante do diagnóstico de abortamento infectado, devemos administrar, imediatamente, antibióticos de amplo espectro e fornecer medidas de suporte em casos de sepse. 

Em seguida, proceder à abordagem do foco infeccioso, como o esvaziamento uterino, em caso de abortamento incompleto, com a presença de restos ovulares na cavidade endometrial. 

Os casos em que houve manipulação dos órgãos pélvicos, por instrumental não esterilizado em práticas de abortamento clandestinas trazem um desafio adicional à assistência médica. 

Torna-se necessário identificar se houve perfuração uterina, vaginal (ou até de órgãos adjacentes como bexiga e intestino) e lesões vasculares. Também é indispensável uma avaliação da extensão da infecção associada, pois, em casos extremos, pode cursar com abscessos na cavidade abdominal e peritonite generalizada, com risco iminente de sepse e morte.

Além da mortalidade materna associada a esses procedimentos, existe um alto risco de sequelas que comprometem o futuro reprodutivo da mulher, pois casos graves podem demandar a remoção cirúrgica parcial ou total de órgãos pélvicos, para controle do quadro agudo.

Em 2020, foi publicada uma revisão de literatura no New England Journal of Medicine, sobre as complicações do abortamento inseguro (Harris, 2020; Figura 1). 

Diante da discussão atual, após o vazamento do documento da Suprema Corte dos Estados Unidos, dois artigos de opinião (Harris, 2022; Wilkinson et al., 2022) também foram publicados nesse periódico de grande prestígio na comunidade médica, o que reforça a importância do tema.

Figura 1. Locais mais frequentes de lesão uterina nos abortamentos provocados.

Fonte: Harris LH, Grossman D. Complications of Unsafe and Self-Managed Abortion. N Engl J Med. 2020 Mar 12;382(11):1029-1040. doi: 10.1056/NEJMra1908412. PMID: 32160664.

Em quais situações o abortamento é permitido no Brasil?

Atualmente, o abortamento é proibido pela legislação brasileira, com algumas exceções. A prática é permitida em gestações decorrentes de estupro, desde que consentido pela gestante ou, quando incapaz, pelo seu representante legal. 

A interrupção da gestação decorrente de violência sexual poderá ser feita mediante notificação obrigatória, até 22 semanas de gestação. 

Após as 22 semanas, ou caso a vítima/representante legal opte por não interromper a gestação, ela deverá ser encaminhada para a assistência pré-natal e orientada sobre a possibilidade de entregar o bebê para a adoção, se assim for o seu desejo.

A prática também é permitida em situações de risco de morte materna pela gestação. Ou seja, se a gestante é portadora de alguma doença – como uma cardiopatia grave, por exemplo – pode ser agravada pelo estado gestacional, implicando em risco de óbito materno. 

Discussões sobre a prática no Brasil

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a mulher com gestação de feto anencéfalo poderá manter ou interromper a gestação, conforme vontade pessoal, na rede pública ou no serviço privado de saúde. Portanto, não é mais necessária qualquer autorização judicial para a realização do procedimento em casos de anencefalia.

A pesquisa de opinião Global views on abortion, realizada pelo Ipsos em 2021, mostrou que 64% da população brasileira é favorável à descriminalização, seja total ou em situações específicas (Figura 2).

Figura 2. Opinião dos brasileiros sobre o aborto, 2021.

Ipsos publicado em reportagem de BBC

Proibição do abortamento: conservadorismo, religião e Estado

Na maioria dos países do mundo, a proibição do abortamento é decorrente do conservadorismo e de dogmas religiosos.

 Todas essas questões são relevantes e devem ser respeitadas no âmbito da decisão individual da família em optar, ou não, pela interrupção da gestação. No entanto, são fatores que não devem ter influência sobre o Estado, a legislação ou a regulamentação da prática.

Trata-se de uma questão de saúde pública, e princípios individuais não podem se sobrepor às necessidades coletivas. 

Conservadorismo

Podemos observar as consequências do aumento do conservadorismo no Brasil (e da influência de grupos religiosos sobre o Governo): 

Nos últimos dez anos, 68 dos 69 projetos de Lei referentes ao direito ao abortamento apresentados na Câmara e no Senado tratavam de restringi-lo. E o movimento vem se intensificando: em 2021, 46 proposições contra o abortamento tramitavam no Congresso Nacional.

O profissional de saúde é obrigado a realizar o procedimento?

Os profissionais de saúde que, por questões pessoais, não deseje realizar o procedimento, têm sua objeção de consciência garantida pelo Código de Ética Médica, que assegura ao médico o direito de “recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”. 

No entanto, essa recusa não será admitida em “situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.

 O médico deverá, ainda, indicar outro profissional que preste a assistência necessária.

Quais são as consequências da legalização? 

Contrariamente ao imaginário coletivo, as evidências mostram que a legalização do abortamento não causa o aumento da prática. 

Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de abortamentos provocados caiu de cerca de 1,3 milhão, em 2000, para 862 mil, em 2017.

O oferecimento de condições adequadas leva à diminuição das complicações e da mortalidade materna associadas ao abortamento inseguro. 

O acolhimento nos serviços de saúde, na ocasião do desejo de interrupção de uma gestação, fornece um maior acesso à informação sobre saúde sexual e aos métodos contraceptivos, resultando em um planejamento familiar adequado, com menor número de futuras gestações não planejadas e novos abortamentos.

A proibição do abortamento e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde pelas mulheres em situação de risco só vai gerar mais sequelas e mais mortes. 

A única maneira de lidar com o grande problema dos abortamentos inseguros e suas consequências, como a alta morbimortalidade materna, é através de políticas públicas eficazes.

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Referências