Ciclo Clínico

Atendimento Inicial ao Politraumatizado no contexto intra-hospitalar | Ligas

Atendimento Inicial ao Politraumatizado no contexto intra-hospitalar | Ligas

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O trauma nos países ocidentais é a terceira causa morte, depois de doenças cardiovasculares e cânceres, sendo naqueles abaixo de 45 anos de idade, a primeira causa de morte.

Tal fatalidade acomete principalmente a população economicamente ativa, com conseqüências sociais de elevado custo.

Portanto, o atendimento ao paciente politraumatizado deve seguir uma abordagem multidisciplinar pela possibilidade de múltiplas lesões associadas.

Veja a seguir as características do paciente, os níveis de trauma e a conduta específica para cada situação.

Características do paciente Politraumatizado

Antes de saber cada etapa do atendimento em si, você precisa entender o que é um paciente politraumatizado.

Um paciente politraumatizado é considerado aquele que apresenta lesões em dois ou mais sistemas, sendo necessário que pelo menos uma, ou uma combinação dessas lesões, represente um risco vital para o doente.

Os três picos do trauma

As mortes por trauma costumam ocorrer em três picos distintos.

O primeiro pico corresponde as mortes que acontecem nos segundos ou minutos iniciais após o trauma. As lesões nesses pacientes são tão graves, que dificilmente eles podem ser salvos.

O segundo pico corresponde as mortes que acontecem algumas horas após o trauma. O atendimento pós-trauma nesses pacientes interfere significativamente na probabilidade de sobrevivência da vítima.

Esse momento, portanto, é chamado de “Golden Hour”.

Por fim, o terceiro pico corresponde as mortes que acontecem mais tardiamente, até algumas semanas após o trauma.

A taxa de mortalidade desse grupo tem grande associação com os cuidados prestados nas fases anteriores.

Assim, é possível percebermos que o atendimento prestado ao paciente, em cada uma dessas etapas, interfere diretamente no evolução e prognóstico do politraumatizado a longo prazo.

Avaliação Inicial

Agora que você já sabe o que é um paciente politraumatizado, e a importância do atendimento desde o momento do trauma, vamos aprender como devemos abordá-lo.

Diante de toda vítima politraumatizada, é imprescindível o estabelecimento de uma abordagem sistematizada.

Essa abordagem inclui dez etapas, e é denominada de Avaliação Inicial. Vamos entender cada uma dessas etapas!

PREPARAÇÃO

A preparação envolve dois ambientes distintos: o pré-hospitalar e o intrahospitalar. É fundamental que a equipe que esteja atendendo a vítima no local do acidente comunique a transferência do paciente ao hospital de destino, para que ocorra o preparo da emergência pela equipe irá recebe-lo.

TRIAGEM

A triagem corresponde a classificação das vítimas, de acordo com a gravidade das lesões, para que possam ser encaminhadas para o hospital adequado e com recursos disponíveis para o tratamento necessário.

AVALIAÇÃO PRIMÁRIA, REANIMAÇÃO E MEDIDAS AUXILIARES À AVALIAÇÃO PRIMÁRIA E À REAVALIAÇÃO

Essas três etapas ocorrem simultaneamente, e, portanto, serão abordadas juntas.

Nesse momento, o objetivo é identificar e tratar de forma prioritária as lesões que implicam risco a vida.

Assim, diante de um doente grave, devemos estabelecer uma sequência de prioridade de tratamento, ou seja, tratar primeiro aquilo que mata mais rápido.

Essa sequência é conhecida como ABCDE do trauma, e devemos segui-la rigorosamente.

  • A: Airway maintenance with restriction of cervical spine motion (Vias aéreas com proteção da coluna cervical)
  • B: Breathing and ventilation (Ventilação e Respiração)
  • C: Circulation with hemorrhage control (Circulação com controle de hemorragia)
  • D: Disabily (Disfunção neurológica)
  • E: Exposure/ Environmental control (Exposição/controle do ambiente)

Antes de começarmos o atendimento por cada etapa, devemos avaliar rapidamente o estado clínico do doente.

Essa avaliação pode ser obtida logo após nos apresentarmos ao paciente, através das seguintes perguntas: “Qual o seu nome?” e “Você pode me falar o que aconteceu?”.

A depender das respostas, podemos ter uma noção da gravidade da vítima.

Uma resposta adequada sugere que, naquele momento, a via aérea do paciente se encontra pérvia, a ventilação não está comprometida e o nível de consciência não está rebaixado.

Feito isso, iniciaremos a avaliação cada uma das etapas.

A: Vias aéreas com proteção da coluna cervical

Para avaliar a perviedade da via aérea, as manobras recomendadas são a chin lift (elevação do mento) e jaw thrust (tração da mandíbula).

Ambas devem ser realizadas com proteção da coluna cervical, uma vez que, todo doente politraumatizado deve ser considerado com lesão cervical até que se prove o contrário.

Essas manobras são importantes para identificar sinais de obstrução da via aérea . Entretanto, se houver corpos estranhos, eles devem ser retirados.

No caso de líquidos em grandes quantidades, deve ser realizada a aspiração com um aspirador de ponta rígida.

Via aérea definitiva

Se tivermos qualquer dúvida sobre a capacidade do doente em manter a permeabilidade da sua via aérea, devemos estabelecer uma via aérea definitiva, que inclui a intubação endotraqueal e a via aérea cirúrgica.

Esta última deverá ser uma opção nos casos em que intubação não tiver sucesso ou haja contraindicações.

Nessa etapa ainda, é importante monitorizar a saturação do paciente, através do oxímetro de pulso, e caso ele seja intubado, a capnografia é importante para avaliarmos o CO2 no ar expirado.

A monitorização eletrocardiográfica também deve ser realizada.

Só após a estabilização da via aérea do paciente, é que poderemos seguir para a próxima etapa.

B: Ventilação e Respiração

Uma via aérea pérvia, por si só, não nos garante que a ventilação do paciente está ocorrendo de maneira adequada. O ar pode estar chegando nos pulmões, mas há algum problema na troca gasosa.

Caso não tenha sido intubado na etapa ‘A’, o politraumatizado deverá receber oxigênio suplementar.  

Nessa etapa, o pescoço e tórax do paciente devem ser bem examinados. Na avaliação do pescoço, devemos procurar por estase de jugulares, desvio de traqueia e enfisema subcutâneo, sinais que podem indicar a presença de uma lesão que necessita de tratamento imediato.

A palpação da coluna cervical também deve ser realizada, a fim de identificar a presença de espículas ósseas, que falam a favor de lesão vertebral.

Checado o pescoço, devemos iniciar o exame físico do tórax, e associar as informações com os achados do exame cervical.

Inspeção torácica

  • inspeção torácica, devemos observar se os movimentos respiratórios estão simétricos e se há lesões, como pneumotórax aberto, por exemplo.
  • palpação, procuraremos por crepitações e locais de hipersensibilidade. O hipertimpanismo ou macicez sugerem lesões importantes.
  • Por fim, devemos auscultar o tórax bilateralmente a procura de murmúrio vesicular.

Obs: Os achados da ausculta e da percussão podem ser difíceis de serem identificados devido ao ambiente barulhento da sala de trauma.

Algumas lesões identificadas nessa etapa, necessitarão de tratamento imediato, sendo elas: pneumotórax hipertensivo, pneumotórax aberto, hemotórax maciço, tamponamento cardíaco e lesão de árvore traqueobrônquica.

Após estabilização dos parâmetros respiratórios do paciente, e tratamento das lesões que causam risco imediato a vida, poderemos seguir para a etapa C.

C: Circulação com controle de hemorragia

Nessa etapa, iremos fazer uma avaliação do estado hemodinâmico do paciente.

A pressão arterial, cor da pele, pulso e o tempo de enchimento capilar são sinais clínicos que oferecem informações importantes sobre a volemia do paciente, e, portanto, devem ser avaliados. 

Hipotensão, pulso taquicárdico, pele fria e pálida, e tempo de enchimento capilar aumentado sugerem fortemente hipovolemia, ou seja, o paciente está perdendo sangue.

Assim, além de hemorragias externas, devemos procurar por sinais que falem a favor de hemorragias internas em locais como tórax, abdome, retroperitôneo, pelve e ossos longos.

Inspeção de abdome, parte inferior do tórax e períneo

Devemos inspecionar abdome, parte inferior do tórax e períneo, na procura de laceração, ferimento penetrante, evisceração, corpos estranhos e gravidez.

Na ausculta, a ausência de ruídos hidroaéreos pode indicar sangue intraperitoneal livre. Na percussão e palpação, a presença de dor pode indicar irritação peritoneal.

A compressão pélvica também deverá ser feita para avaliar instabilidade.

O toque retal deve ser realizado para obter informações como a presença de sangue na luz retal, fragmentos de ossos pélvicos e atonia do esfíncter, que pode sugerir uma lesão raquimedular.

Além do exame físico, podemos lançar mão da Avaliação ultrasonográfica direcionada para trauma (E-FAST), que é bastante sensível para detectar a presença de líquido livre em cavidades.

Deve ser obtida imagens do saco pericárdico, espaço esplenorrenal, espaço hepatorrenal e pelve.

É nessa etapa, que será realizada a reposição volêmica.

Para isso, é necessário a obtenção de acessos periféricos, caso o paciente ainda esteja sem.

Após a obtenção do acesso, devemos colher amostra de sangue para exames laboratoriais, como tipagem sanguínea, prova cruzada, βHCG para mulheres em idade fértil, gasometria e lactato, e devemos iniciar a infusão em bolus de no máximo 1 litro de cristaloide.

Paciente instável

Caso ainda assim, o paciente não estabilize, é recomendada a hemotransfusão, seguindo a proporção de 1:1:1, ou seja, 1 bolsa de concentrado de hemácias para 1 bolsa de plaquetas, para 1 bolsa de plasma.

É importante ressaltar que, a reposição volêmica contínua não substitui o tratamento definitivo da hemorragia.

Todos os fluidos deverão ser pré-aquecidos antes de serem administrados, para evitar o risco de hipotermia, coagulopatia e acidose metabólica, conhecidos como Tríade Letal.

Nessa etapa, ainda podemos utilizar de medidas auxiliares para monitorizar o paciente, como:

Sondagem gástrica: indicada para diminuir a distensão gástrica, evitando vômitos e aspiração, e avaliar hemorragias do trato gastrointestinal.

Sondagem vesical: avalia o débito urinário, que é um importante marcador de volemia e perfusão renal.

No caso de sinais sugestivos de lesão de uretra (sangue no meato uretral e equimose perineal), a integridade da uretra deve ser confirmada pela uretrografia retrógrada antes da colocação da sonda.

Caso seja confirmada a lesão, está indicada a punção suprapúbica (cistostomia).

D: Disfunção neurológia

Nessa etapa iremos fazer a avaliação do nível de consciência da vítima, através da escala de coma de Glasgow.

O rebaixamento do nível de consciência pode estar associado a um trauma direto no cérebro ou hipóxia/hipoperfusão.

É importante também checarmos a reatividade das pupilas através do reflexo fotomotor direto e consensual.

Pupilas anisocóricas podem indicar aumento da PIC por uma lesão expansiva.

E: Exposição/controle do ambiente

Nessa etapa, devemos retirar todo o traje do doente, atentando para a hipotermia (aquecer com manta térmica e aumentar a temperatura da sala).

Não podemos esquecer de checar o dorso do paciente, a procura de lesões ocultas.

Após terminar essa avaliação sequenciada, devemos reavaliar o paciente, para então, continuarmos com as etapas seguintes da Avaliação Inicial.

CONSIDERAR A NECESSIDADE DE TRANSFÊRENCIA DO DOENTE

Caso a equipe que esteja atendendo o paciente verifique a necessidade de transferência da vítima para outra instituição, esse processo deve ser iniciado imediatamente.

AVALIAÇÃO SECUNDÁRIA E MEDIDAS AUXILIARES A AVALIAÇÃO SECUNDÁRIA

Após a realização completa das etapas passadas, devemos iniciar a avaliação secundária, que consiste em um exame completo do paciente.

Esse exame inclui uma história clínica completa, a fim de obter informações sobre alergias, medicamentos de uso habitual, passado médico, líquidos e alimentos ingeridos recentemente e mecanismo do trauma.

Essas informações podem ser obtidas com familiares da vítima. Além da história, devemos realizar um exame físico completo, da cabeça aos pés.

Na presença de qualquer alteração, podemos solicitar exames específicos para o fechamento do diagnóstico.

REAVALIAÇÃO

Todo doente politraumatizado deve ser reavaliado constantemente, pois a qualquer momento, pode haver uma deterioração dos achados já registrados.

TRATAMENTO DEFINITIVO

Caso a instituição que o paciente esteja não apresente recursos suficientes para o seu tratamento, ele deve ser transferido para um centro de trauma mais especializado.

Liga: Liga Acadêmica de Trauma e Emergência Cirúrgica (LATEC)

Instagram: @latec_unifacs

Autora: Camila Reis Cardoso Granato

Revisor: Lucas Lins Palmeira Ferreira

Orientador da liga: Marcio Rivison


O texto acima é de total responsabilidade do(s) autor(es) e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


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