Ginecologia

Casos clínicos de pielonefrite na gravidez

Casos clínicos de pielonefrite na gravidez

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HISTÓRIA CLÍNICA

Paciente com 18 anos, primigesta, com idade gestacional de 26 semanas chega ao pronto atendimento de uma maternidade com a queixa de “dor na barriga”. Paciente relata quadro de dor abdominal em cólica de forte intensidade há 5 dias, associado a náusea, vômitos, anorexia e constipação intestinal. Além disso, relata febre não termometrada, com calafrios. Nega sintomas urinários. Refere aumento de tônus uterino, com movimentos fetais preservados. Nega perda de líquido, corrimentos ou sangramentos vaginais.

Paciente nega comorbidades pré-gestacionais, cirurgias prévias e alergias medicamentosas. Refere ter realizado tratamento para infecção do trato urinário (ITU) no primeiro trimestre da gestação, com uso de Cefalexina para tratamento – urocultura de controle sem crescimento bacteriano registrada no cartão de pré-natal.

Ao pré-natal apresentava-se normotensa nas consultas, sem registros de outras intercorrências.

Exames transcritos do cartão da gestante: GsRH: O positivo; glicemia em jejum = 74mg/dL (VR < 92); hemoglobina = 9,4g/dL; VDRL não reagente; HBsAg não reagente; Anti-HIV não reagente; toxoplasmose IgM e IgG negativos.

EXAME FÍSICO

Geral: paciente em regular estado geral, prostrada, com fáceis de dor. Bem orientada no tempo e no espaço, hidratada no limiar, hipocorada +/++++.

Cardíaco: bulhas normo-rítmicas e normo-fonéticas, em dois tempos, sem sopros. Pressão arterial = 115/85 mmHg; Frequência cardíaca 105 bpm. Perfusão capilar < 3segs.

Pulmonar: murmúrio vesicular fisiológico, sem ruídos adventícios; frequência respiratória (FR) 19 irpm, sato2 = 98% em ar ambiente. Temperatura axilar (TAX) de 38ºC.

Abdome: abdome gravídico, doloroso à palpação difusa, principalmente em fossa ilíaca direita e à compressão, sem sinais de irritação peritoneal. Altura uterina = 27cm. Útero indolor a mobilização, com tônus normal, dinâmica uterina ausente. Feto longitudinal e cefálico pelas manobras de Leopold. Batimento cardíaco fetal (BCF) de 136 BPM, sem desacelerações. Punho-percussão lombar (sinal de Giordano) positiva a direita.

Exame especular: não foi observada saída de líquido pelo orifício externo do colo, mesmo à manobra de Valsava. Presença de secreção fisiológica em fundo vaginal, sem alterações de coloração ou odor. Não foi possível identificar sinais infecciosos.

Toque vaginal: colo com orifício externo aberto, orifício interno fechado, grosso e posterior, indolor a mobilização.

EXAMES COMPLEMENTARES

QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO

1.Qual a principal hipótese diagnóstica?

2.Quais são os principais diagnósticos diferenciais nesse caso?

3.Qual a utilidade dos exames complementares solicitados?

4.Como a gestação influencia no raciocínio clínico para o diagnóstico?

5.Qual a conduta deve ser tomada?

DISCUSSÃO

O quadro de dor abdominal é extremamente comum em gestantes, principalmente na segunda metade da gestação. A avaliação inicial da paciente tem como objetivo diferenciar patologias graves dos sintomas gerais da gestação1 .

As possíveis causas de dor abdominal em gestantes incluem desde a compressão dos órgãos adjacentes pelo útero em crescimento, até um abdome agudo cirúrgico, como apendicite. O objetivo da revisão laboratorial inicial nesse caso é determinar a etiologia da dor abdominal.

Além da febre e o sinal de Giordano positivo, os resultados de exames sugerem um processo infeccioso pela leucocitose com desvio e aumento de PCR. O resultado da urina tipo um e do Gram de gota indicam um foco de origem urinária. É importante ressaltar que, na gestante, o quadro clínico das infecções do trato urinário pode ser frustro e iniciar apenas com sintomas atípicos, como dor leve em baixo ventre, devido à imunossupressão típica da gravidez.

A gestação cursa com diversas alterações fisiológicas da que favorecem o desenvolvimento de infecções do trato urinário. Na gestação, os rins aumentam de tamanho e ocorre dilatação e redução da peristalse dos ureteres e aumento da complacência vesical devido ao relaxamento muscular induzido pela progesterona. Essas alterações promovem aumento da produção de urina, estase urinária e refluxo vesicoureteral, favorecendo o crescimento bacteriano e as infecções2 .

Existem três diagnósticos básicos para as infecções do trato urinário importantes no acompanhamento da gestação: bacteriúria assintomática, cistite e pielonefrite. Assim como nas mulheres não grávidas, a principal bactéria causadora das infecções do trato urinário é a Eschericia coli, responsável por aproximadamente 70% dos casos. Outros organismos incluem Klebsiella e Enterobacter (3% cada), Proteus (2%), e bactérias gram-positivas , incluindo Streptococcus do grupo b (10%)3 .

A bacteriúria assintomática define-se como a colonização bacteriana do trato urinário diagnosticada pela urocultura evidenciando mais de 100.000 unidades formadoras de colônia sem qualquer queixa ou manifestação clinica na paciente. A bacteriúria assintomática ocorre em 2 a 7% das gestantes 3. Destas, de 30 a 40% irão desenvolver cistite ou pielonefrite, por isso está indicada a realização de urocultura de rotina no pré-natal no primeiro e terceiro trimestre5. Já a cistite aguda caracteriza-se pela presença de sintomas urinários, como disúria, urgência miccional, polaciúria e algúria, associada à urocultura positiva ou exame de urina tipo I e Gram de gota sugestivos. A cistite tem uma incidência de 1 a 2% em gestantes3 . Tanto a bacteriúria assintomática quanto a cistite aguda tem indicação de tratamento com antibióticos, idealmente guiado pelo antibiograma. Porém, o tratamento não deve ser adiado caso não haja resultado de exame, podendo-se realizar o tratamento empírico até que o resultado do antibiograma esteja disponível.

Após o tratamento da bacteriúria assintomática e da cistite, a paciente deve realizar uma urocultura de controle de cura – 7 a 10 dias após o término no tratamento. Além disso, está indicada a quimioprofilaxia após o segundo episódio de bacteriúria assintomática ou cistite5 .

A pielonefrite é uma das complicações clinicas da infecção do trato urinário e rins e possuiu uma incidência de 0,5 a 2% em gestantes 3, sendo umas das complicações clinicas mais sérias da gravidez2. O acometimento pode ser unilateral à direita (50% dos casos), unilateral à esquerda (25% dos casos) ou bilateral (25% dos casos) – a dextrorrotação do útero obstrui o ureter direito, o que justifica essa distribuição. O quadro clínico da pielonefrite é composto pela queda do estado geral, febre, calafrios, cefaleia, náuseas e vômito e dor em flanco (punho-percussão positiva) – como apresentava a paciente do caso clínico.

Apesar de desfechos graves da ITU não serem os mais comuns, a sepse pode ocorrer em até 0,3% das gestantes, sendo mais grave que na população não gestante, uma vez que qualquer descompensação hemodinâmica materna pode levar a descompensação fetal e ao óbito, além de também associar-se a trabalho de parto prematuro, anemia e síndrome de desconforto respiratório agudo3 .

Os fatores de risco para infecções do trato urinário a partir de 20 semanas de gestação são diabetes mellitus, alterações anatômicas do trato urinário, antecedente de ITU, antecedente de Chlamydia trachomatis e uso de drogas ilícitas. Além disso, a pielonefrite é mais comum em mulheres jovens e nulíparas.

Tabela 1. Principais sinais e sintomas da pielonefrite

A gestante com diagnóstico clínico de pielonefrite deve ser tratada em regime de internação hospitalar e antibiótico terapia endovenosa por 24 a 48 horas, de acordo com a resposta da paciente. No caso descrito, a opção inicial foi cefazolina (uma cefalosporina de primeira geração). Porém, o resultado da urocultura isolou uma Escherichia Coli resistente a cefalotina (também uma cefalosporina de primeira geração), sendo optado por mudança para ceftriaxone (cefalosporina de terceira geração). Assim como na bacteriúria assintomática e da cistite, após o tratamento da pielonefrite, deve ser urocultura de controle de cura. Além disso, após um episódio de pielonefrite, as gestantes devem realizar quimioprofilaxia para novas infecções e realizar urocultura mensalmente, até o final da gestação5 .

Tabela 2. Principais antibióticos usados para tratamento de ITU em gestantes

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS PRINCIPAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZADO/COMPETÊNCIAS

• Conhecimento de um atendimento básico em pronto atendimento obstétrico.

• Estudo das infecções do trato urinário na gestação.

• Conhecer as opções de tratamento e as indicações de profilaxia.

• Correlacionar com os possíveis diagnósticos diferenciais.

PONTOS IMPORTANTES

• Conhecimento sobre uma das queixas mais comuns da gestação.

• Quadro de dor abdominal pode ter causas que ameaçam a vida da gestante e do feto, devendo sem adequadamente diagnosticadas e tratadas.

• Importância da suspeição clínica para abordagem precoce das causas de dor abdominal na gestante.

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