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O tabagismo foi, ainda é, e continuará sendo um grande problema de saúde pública. A indústria do tabaco é responsável por cerca de 12% dos óbitos mundiais, causando doenças respiratórias, cardiovasculares e neoplásicas.
Essa indústria tem se renovado a cada geração. Trazendo novos produtos para consumo da nicotina, assim como novas formas de usar e novos públicos alvos.
A OMS estima que de 2010 a 2015 haverá uma redução de 30% do consumo do tabaco mundial. Em alguns países, como no Brasil, já conseguimos ver taxas otimistas. A pesquisa do Vigitel sobre as doenças crônicas não transmissíveis mostrou que:
- 2006 – 15,6% dos brasileiros afirmaram ter o hábito de fumar;
- 2018 – esse número diminuiu para 9,3%. Em contrapartida, tem tido um produto da indústria do tabaco que tem gerado imensa preocupação, porque tem como principal público-alvo: os adolescentes e jovens adultos.
De qual produto estamos falando? Dos pods, vapes, cigarros eletrônicos, ecigarettes e afins.
Contextualização
A pesquisa nacional de saúde do escolar trouxe um dado de que em média 16,8% dos adolescentes de 13 a 17 anos já experimentaram cigarro eletrônico. Conseguem imaginar o impacto do que estamos falando? E o que tem por vir em termos de saúde pública caso esses adolescentes se tornem usuários habituais deste produto?
As novas gerações de crianças e adolescentes não foram expostas aos cigarros tradicionais e têm se mostrado mais vulneráveis ao uso do Vape. Hoje, ao frequentar eventos do público mais jovem é impossível não se deparar com diversos tipos de cigarros eletrônicos.
Além de serem danosos para a saúde (que é o nosso principal assunto de hoje), é importante ressaltar que seu uso é proibido no nosso país. Todo cigarro eletrônico que alguém fuma no Brasil foi comprado ilegalmente.
Quem comercializa esses produtos comete uma série de crimes, inclusive propaganda ilegal e não recolhimento de impostos, além da própria infração sanitária. Vamos então começar a entender quem são os vapes e o que é vaping.
O que são Vapes e como funcionam?
Com o tempo diversos temas científicos surgem requerendo atualização constante de nós profissionais da saúde. Porém, junto com a atualização científica, nosso linguajar também tem que ser atualizado.
O mundo dos cigarros eletrônicos veio à tona quando um adolescente de 14 anos me perguntou durante uma consulta: “Dra, tem problema eu dar uns vapings nas revoadas?”.
Nesse dia fui me atualizar sobre os vapes e me deparei com a nova entidade nosológica que iremos debater. A pneumopatia induzida por cigarros eletrônicos e vape. Também descobri que revoada é o termo utilizado pela nova geração para definir eventos sociais.
Definição de vape
Os vapes são dispositivos de fumo que produzem um aerossol através do aquecimento e vaporização de uma substância que, em geral, contém nicotina (e outras drogas como tetrahidrocanabinol, THC).
Ao tragar, os vapers absorvem os vapores gerados a partir de soluções conhecidas como e-liquids que contêm solventes além de várias concentrações de nicotina, água, aromatizantes e outros aditivos. Os solventes mais comuns são glicerina e propilenoglicol.
Estima-se que a temperatura de vaporização da resistência pode atingir até 350°C podendo gerar alterações químicas nos líquidos e formar outras substâncias potencialmente tóxicas além de serem carcinogênicas, irritantes e causadoras de pneumopatias.
Quando surgiu o vape?
Inicialmente foram lançados com a finalidade de redução de danos e auxílio da cessação do tabagismo. Porém, há prospecções de aumento do seu consumo no futuro em pessoas que não eram tabagistas, em especial os jovens.
Muitos usuários de vapes não se consideram fumantes, ou seja, não enxergam o hábito como tabagismo e se denominam vapers (vaporizadores).
A Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 mostra que 2,3% das pessoas entre 15 e 24 anos fumam dispositivos de fumo eletrônicos diariamente no nosso país. Já o Vigitel, levantamento feito só em capitais, traz uma prevalência de 7,4% no mesmo público.
EVALI: o que preciso saber sobre a “doença do vape?”
Sigla de e-cigarette and vaping associated lung injury. Traduzido como pneumopatia associado ao uso de cigarros eletrônicos e vapes. É a nova condição clínica identificada em usuários desse tipo de dispositivo.
Então fumar vape faz mal? O se faz! E vamos entender o porquê.
Como surgiu o termo Evali?
Em 2019, nos Estados Unidos, o CDC começou a investigar alguns casos de internações com sinais e sintomas semelhantes, em locais diferentes, e com um fator em comum na história: o uso do cigarro eletrônico.
A condição foi investigada e recebeu o nome de EVALI. Em fevereiro de 2020, o CDC já tinha reportado mais de 2800 internações hospitalares e mais de 68 mortes. Esses números já mostram as dimensões que o problema vem tomando, pensem nos recursos.
Vale ressaltar que, de acordo com o CDC, 15% desses pacientes têm menos de 18 anos. Não temos ainda dados nacionais sobre a incidência e mortalidade dessa doença.
Como diagnosticar o Evali?
É uma doença de difícil diagnóstico e de exclusão. Não há testes laboratoriais ou marcadores específicos da doença e sinais/sintomas patognomônicos, e pelo contrário, os sinais e sintomas são comuns a diversas doenças respiratórias (como influenza).
Deve ser suspeitada principalmente quando há uso de vapes e cigarros eletrônicos identificados na anamnese.
Os principais sintomas são:
- dispneia
- tosse
- dor torácica
- febre e calafrios
- diarreia, náusea, vômitos e dor abdominal
- taquicardia
A causa, até agora, não se sabe exatamente. Foi identificado como possível causa o acetato de vitamina E, um dos aditivos químicos. Um estudo publicado no NEJM em 2020 que avaliou o lavado broncoalveolar de 51 pacientes encontrou vitamina E em 48 dessas amostras.
É importante ressaltar também que o vaping pode exacerbar diversas pneumopatias crônicas como a asma. O que contribui para internações e aumento da morbimortalidade dessas condições.
Nos Estados Unidos, a maioria dos casos hospitalizados e dos óbitos ocorreram em pacientes que utilizavam substância contendo THC, a maconha líquida.
Tratamento para a “doença do vape”
O tratamento consiste em oferecer suporte conforme necessidade do paciente. Tratamento de suporte ambulatorial ou internação hospitalar.
Tratamento de suporte ambulatorial é indicado para casos sem:
- estabilidade clínica como saturação acima de 95% em ar ambiente,
- sinais de dispneia,
- graves comorbidades e
- comorbidades pulmonares.
O tratamento de suporte ambulatorial deve ser feito com monitorização frequente a cada 24 a 48h.
Internação hospitalar é considerado para casos de:
- queda do estado geral,
- queda da saturação,
- coinfecção viral ou bacteriana e
- exacerbação de doenças de base.
Corticosteróides têm demonstrado redução do tempo de internação e melhor recuperação, porém ainda é necessário mais estudos sobre sua utilização. Acesse o algoritmo de tratamento proposto pelo CDC.
Dados no Brasil sobre o uso do vape e sobre a doença do vape
A comercialização, importação e propaganda de todos os tipos de dispositivos eletrônicos para fumar estão proibidas no Brasil desde 2009 por meio da RDC nº 46, de 28 de agosto.
Em julho de 2022, por votação unânime, a ANVISA aprovou relatório que manteve a proibição, importação e propaganda dos dispositivos eletrônicos para fumar.
Além da proibição, também foram adotadas medidas para redução da oferta e da demanda desses produtos. Entre elas: ações de fiscalização em conjunto com outros órgãos e campanhas educativas.
Segue abaixo a opinião do Instituto Nacional de Câncer (Inca) sobre o uso desses dispositivos:
“Os dispositivos eletrônicos não são eficazes e nem seguros para o consumo humano. Os estudos têm demonstrado que esses dispositivos eletrônicos são eficazes na atração de crianças, adolescentes e jovens para o consumo da nicotina. Tornando-se dependente dessa substância”, afirmou Liz Maria de Almeida, do Inca.
Veja também:
- Entenda a posição do CFM em relação ao cigarros eletrônicos
- A utilização do cigarro eletrônico e a EVALI: uma situação emergente|Colunistas
- Tabagismo: definição, sobre o tabaco, nicotina e mais!
Qual o papel dos profissionais da saúde na prevenção do avanço do uso do vape?
Temos um cenário bastante desafiador pela frente. A ascensão do uso por jovens e adolescentes de um produto ilegal cujo conteúdo não tem nenhuma fiscalização e tem dados suficientemente consolidados sobre o quão nocivo à saúde pode ser. Parece clichê, mas nosso principal foco aqui tem que ser a prevenção do seu uso e a educação em saúde sobre seus malefícios.
Entre as medidas para ampliar a conscientização, a Anvisa sugere:
- Capacitação de professores via Ministério da Educação
- Elaboração de material informativo para distribuição nas escolas
- Plano de comunicação sobre os riscos com influenciadores digitais e linguagem adequada a crianças e adolescentes
- Criação de espaço no site da Anvisa para divulgação de riscos do uso de DEFs
Adiciono aqui a necessidade de nós profissionais de saúde perguntarmos ativamente a todos nossos pacientes se fumam ou não. E mesmo na resposta negativa, questionar se “puxa vape”, se “usa pod”, etc. Isso porque alguns podem não interpretar o uso do vape como tabagismo.
Aguardemos cenas dos próximos capítulos em relação a essa doença especificamente no cenário nacional.
Obrigada pela leitura! Até a próxima.
Referências
- E-cigarette, or Vaping Product, Use Associated Lung Injury (EVALI) > Fact Sheets > Yale Medicine. https://www.yalemedicine.org/conditions/evali. Accessed: 2022-09-07
- Vitamin E Acetate in Bronchoalveolar-Lavage Fluid Associated with EVALI HHS Public Access. B C Blount, M P Karwowski et al. N Engl J Med, 382, 8, 2020
- For Healthcare Providers | Electronic Cigarettes | Smoking & Tobacco Use | CDC
- https://www.cdc.gov/tobacco/basic_information/e-cigarettes/severe-lung-disease/healthcare-providers/index.html. Accessed: 2022-09-07
- Update: Interim Guidance for Health Care Providers for Managing Patients with Suspected E-cigarette, or Vaping, Product Use–Associated Lung Injury — United States, November 2019. Tara C. Jatlaoui, Jennifer L. Wiltz et al. MMWR. Morbidity and Mortality Weekly Report, 68, 46, 11 2019.
- Injúria pulmonar relacionada ao uso de cigarro eletrônico (EVALI) – Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. https://sbpt.org.br/portal/cigarro-eletronico-alerta2-sbpt/ Accessed: 2022-09-07
- Cigarro eletrônico — Português (Brasil). https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/tabaco/cigarro-eletronico. Accessed: 2022-09-07
- Anvisa mantém proibição do cigarro eletrônico e defende fiscalização do comércio ilegal; entenda regras | Saúde | G1. Accessed: 2022-09-07
- Após decisão da Anvisa, como de fato controlar o cigarro eletrônico? | Veja Saúde. Accessed: 2022-09-07
Fonte: texto da Dra. Maitê Dahdal, médica de Família e Comunidade. Coordenadora da Pós-Graduação da Sanar.