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Doença de Behçet: não a confunda com herpes! | Colunistas

Doença de Behçet: não a confunda com herpes! | Colunistas

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Definição

  • A doença de Behçet é um distúrbio inflamatório de causa desconhecida, caracterizado por úlceras aftosas orais recorrentes, úlceras genitais, uveítes e lesões cutâneas. Todas essas manifestações comuns são autolimitadas, exceto as crises oculares, que, com a repetição, podem causar cegueira.

Epidemiologia

  • O maior número de casos da doença de Behçet se encontra ao longo da antiga Rota da Seda, que se estende do leste da Ásia até a bacia do Mediterrâneo. Muitos estudos mostram que mulheres são mais acometidas na Europa, e homens no Oriente Médio e no Sudeste Asiático, sendo os homens mais afetados por manifestações mais severas em todas as regiões.
  • A doença de Behçet ocorre principalmente entre os 18 e 40 anos, sendo raro após os 55. A frequência dentro de uma mesma família é de 2 a 5%, exceto nos países do Oriente Médio, onde é de 10 a 15%.

Fisiopatologia:

  • A causa da doença ainda é desconhecida, e sabe-se que existe uma forte predisposição genética. Os estudos de alguns dos marcadores ou antígenos transmitidos geneticamente mostram uma maior incidência de um alelo conhecido como HLA-B51 em comparação com a população em geral, mas sabe-se que esta não é a causa, uma vez que a maioria das pessoas com este marcador não tem Behçet; por outro lado, alguns pacientes com Behçet não possuem o HLA-B51. No entanto, muitas vezes há história familiar de Behçet ou apenas de úlceras orais de repetição.
  • Lesões vasculares, hiperfunção de neutrófilos e respostas autoimunes são características da doença de Behçet. As biópsias confirmam a presença de vasculite próximo às lesões da doença de Behçet, incluindo úlceras orais e genitais, eritema nodoso, uveíte posterior, epididimite, enterite e lesões do sistema nervoso central. As lesões vasculares se sobrepõem à hipercoagulabilidade, também característica da doença de Behçet, que pode ser devida em parte às células endoteliais ativadas e às plaquetas ativadas.
  • Lesões ativas são infiltradas por neutrófilos mesmo na ausência de infecção. Os neutrófilos de pacientes com doença de Behçet aumentam a produção de superóxido, aumentando a quimiotaxia e a produção excessiva de enzimas lisossomais, indicando que os neutrófilos estão hiperativos, o que leva a lesões nos tecidos.

Manifestações clínicas

  • ÚLCERAS ORAIS: ocorrem em 98% dos pacientes. São recorrentes, ocorrendo pelo menos três vezes em um período de 12 meses. Podem ser múltiplas ou únicas, geralmente são dolorosas e, dependendo de sua gravidade, se curam em 7 a 21 dias. A lesão típica é redonda, com uma borda eritematosa acentuada, e a superfície é coberta por uma pseudomembrana amarelada.
  • ÚLCERAS GENITAIS: ocorrem em 80% dos pacientes. Recorrentes e dolorosas, ocorrem no escroto, pênis, vulva e vagina. As lesões são semelhantes às úlceras orais, mas geralmente maiores e mais profundas, com margem irregular.
  • LESÕES OFTALMOLÓGICAS: ocorrem em 50% dos pacientes. Os sintomas incluem visão turva, dor nos olhos, fotofobia, lacrimejamento, moscas volantes e hiperemia periglobal (provavelmente como resultado de episclerite). Embora os episódios de uveíte anterior diminuam espontaneamente, a repetição de episódios pode levar a mudanças estruturais irreversíveis, como deformidade da íris e glaucoma secundário. O problema ocular mais sério em pacientes com doença de Behçet é a doença da retina. Crises recorrentes podem envolver o segmento posterior como resultado de lesões vaso-oclusivas. Os pacientes geralmente apresentam uma diminuição bilateral e indolor da acuidade visual.
  • ARTRALGIA: ocorre em 50% dos pacientes. Alguns pacientes podem sentir apenas dores nas articulações, sem qualquer evidência de inflamação. No entanto, quando uma artrite verdadeira está presente, ela é inflamatória, indicada por artralgia, rigidez, edema, calor e sensibilidade. Os joelhos são mais comumente afetados, seguidos por tornozelos, pequenas articulações das mãos e pulsos e, menos comumente, ombros e quadris.
  • LESÕES DE PELE: o eritema nodoso é mais comum em pacientes do sexo feminino e geralmente ocorre na parte frontal das pernas. As lesões são dolorosas e geralmente curam-se espontaneamente, deixando uma área profundamente pigmentada, mas podem ulcerar. Pseudofoliculite e nódulos acneiformes são mais comuns em pacientes do sexo masculino e se distribuem nas costas, rosto e pescoço, especialmente ao longo da linha do cabelo.
  • TROMBOFLEBITE: inflamação das veias, mais frequentemente na parte inferior das pernas, semelhante a uma trombose venosa profunda.
  • ARTERITE: inflamação das artérias, que podem inchar em pontos de fraqueza (aneurismas) e causar ruptura e sangramento.
  • LESÕES PULMONARES: decorrentes de inflamação dos vasos sanguíneos, podendo causar oclusão das artérias pulmonares.
  • ENVOLVIMENTO DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL: devido a inflamações dos vasos sanguíneos, podendo causar trombose de grandes veias (seios durais).
  • ÚLCERAS GASTROINTESTINAIS: mais comuns no Extremo Oriente, podem perfurar e sangrar.

Métodos diagnósticos

Não há exame específico para a doença de Behçet no momento. É diagnosticada por padrões específicos de sintomas e crises repetidas deles. Quaisquer outras causas para esses sintomas devem ser excluídas primeiro.

Existe o sistema de pontuação dos Critérios Internacionais para a Doença de Behçet, apresentado na tabela abaixo. A pontuação maior ou igual a 4 indica grade probabilidade de o paciente ter a doença.

SINAIS/SINTOMASPONTOS
Lesões oftalmológicas2
Úlceras genitais2
Úlceras orais2
Lesões de pele1
Manifestações neurológicas1
Manifestações vasculares1
Teste de patergia positivo*1*
*O teste de patergia é opcional, e o sistema de pontuação principal não o inclui. No entanto, quando o teste de patergia é realizado, um ponto extra pode ser atribuído para um resultado positivo.

Teste de patergia: aparecimento de pápulas ou pústulas assépticas após introdução, de forma oblíqua, de uma agulha 20G ou diâmetro inferior sob condições estéreis. Deve ser observado o resultado após 24 h e 48 h.

  • De acordo com o score do seu paciente, você deve avaliar a probabilidade de ele ter a doença de Behçet de acordo com a seguinte tabela:
SCOREPROBABILIDADE DE TER BEHÇETCLASSIFICAÇÃO SIMPLES
≤1QUASE CERTEZA NÃO SERNÃO
2MUITO IMPROVÁVELNÃO
3POSSÍVEL, MAS IMPROVÁVELNÃO
4PROVÁVELBEHÇET
5MUITO PROVÁVELBEHÇET
≥6QUASE CERTEZABEHÇET

Diagnósticos diferenciais

  • As ulcerações orais podem estar associadas a hemopatias, HIV, doença de Crohn, lúpus, epidermólise bolhosa ou deficiências de vitaminas.
  • As úlceras genitais podem ser causadas por DSTs, como herpes genital, sífilis, donovanose.
  • Sarcoidose, doença de Crohn, Vogt-Koyanagi Harada e uveíte infecciosa devem ser descartadas em caso de uveíte recorrente.
  • Quanto às manifestações venosas, deve-se excluir a síndrome antifosfolipídica ou trombofilia, enquanto as lesões arteriais podem mimetizar arterite ou policondrite de Takayasu.
  • Os sintomas neurológicos às vezes podem ser difíceis de distinguir da esclerose múltipla ou tuberculose.
  • Por último, as doenças inflamatórias intestinais crônicas devem ser excluídas em caso de envolvimento gastrointestinal.

Tratamento

  • Manifestações menos graves como aftas, dores articulares, lesões de pele e úlceras genitais podem ser tratadas com medicamentos como corticosteroides orais, colchicina, pentoxifilina, penicilina, dapsona, talidomida (não usar em mulheres com idade fértil, pois é teratogênico), entre outros. Agentes imunossupressores como azatioprina, ciclofosfamida, ciclosporina e metotrexato são reservados para manifestações graves como a inflamação ocular, as manifestações neurológicas ou vasculares (veias ou artérias). Pacientes que não melhoram com imunossupressores podem se beneficiar com agentes imunobiológicos, especialmente com agentes anti-TNFα, como o infliximabe e o etanercepte.
  • Úlceras orais e genitais: os corticoides podem ajudar consideravelmente, mas deve‑se tomar cuidado se forem necessários em grandes quantidades e por períodos prolongados, pois podem causar efeitos colaterais graves e toxicidade.
    • Os corticoides tópicos, onde a medicação é aplicada diretamente nas úlceras, são a primeira linha de tratamento.
    • Pode ser feito o uso de corticoides orais durante as crises de úlcera para encurtar o período de cicatrização e impedir a evolução das lesões. Muitos estudos mostram que os pacientes se beneficiam desse plano de tratamento, usando prednisona 20 mg 1 vez ao dia por 5 dias. Dessa forma pode-se evitar o uso prolongado do corticoide oral.
    • Enxaguantes bucais com corticoide (com ou sem antibióticos ou um agente antifúngico) e pastilhas são frequentemente úteis.
    • Colchicina em baixas doses regulares pode ser eficaz na redução do número e gravidade dos surtos com úlceras.
  • Manifestações oftalmológicas: uma variedade de tratamentos pode ser necessária, dependendo da patologia. Devem ser avaliadas pelo oftalmologista e podem ser prescritos colírios de esteroides, injeção direta de esteroide, esteroides orais ou intravenosos e/ou agentes imunossupressores (por exemplo, ciclofosfamida), um inibidor de TNF como o infliximabe, interferon-alfa e tratamento a laser.

Doença de Behçet e coronavírus

  • Os Centros de Behçet de Birmingham e Liverpool consideram que ter um diagnóstico de Behçet não significa automaticamente que você é clinicamente extremamente vulnerável e com risco muito alto de doença grave se você pegar o coronavírus (COVID 19). Contudo, existem relatos de casos de pacientes portadores da doença de Behçet que foram diagnosticados com Covid-19 e apresentaram agudização da Behçet durante a doença, com manifestações vasculares como trombose venosa profunda e úlceras cutâneo-mucosas. No entanto, ainda não se tem estudos que comprovem a relação de causa e gravidade entre as duas doenças.
  • A estratificação de risco leva em consideração a atividade da doença, combinações de medicamentos imunossupressores e medicamentos corticosteroides (esteroides regulares acima de 5 mg por dia) e a presença de outros fatores, como: idade > 70, diabetes, doença pulmonar pré-existente, insuficiência renal, doenças coronarianas, hipertensão, hipertensão pulmonar e pacientes transplantados.
  • Vacina: o Conselho Médico do Reino Unido e os Centros de Excelência de Behçet recomendam as vacinas Pfizer/BioNTech Covid-19 e Oxford/AstraZeneca COVID-19 para os pacientes de Behçet.

Conclusão

Apesar de pouco conhecida, a doença de Behçet é mais comum do que se tem registro, pois muitas vezes é confundia com doenças sexualmente transmitidas, justamente por desconhecimento dos médicos. A maioria dos relatos de pacientes presentes inclusive no site “Behçet’s UK”, uma Instituição do Reino Unido para pacientes com Doença de Behçet, conta que o diagnóstico leva muitos anos para ser feito, pois os médicos comumente associam as úlceras ao vírus da Herpes. Portanto, o conhecimento sobre essa doença torna-se necessário para que ela deixe de ser subdiagnosticada e para que possamos dar melhor qualidade de vida para os nossos pacientes.


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


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Referências Bibliográficas:

  1. Davatchi et al. The International Criteria for Behçet’s Disease (ICBD): a collaborative study of 27 countries on the sensitivity and specificity of the new criteria. JEADV 2014, 28, 338–347. https://behcetsuk.org/wp-content/uploads/2018/06/ICBD-New-Criteria-2013.pdf
  2. Saadoun, D., Wechsler, B. Behçet’s disease. Orphanet J Rare Dis 7, 20 (2012). https://doi.org/10.1186/1750-1172-7-20.
  3. Sakane T. Et al. Behçet Disease. N Engl J Med 1999; 341:1284-1291.
  4. Mendes D, Correia M, Barbedo M, Vaio T, Mota M, Gonçalves O, Valente J. Behçet’s disease – a contemporary review. Autoimmun Rev. 2009;32:178-188.
  5. Neves FS, de Moraes JCB, Gonçalves CR. Síndrome de Behçet: à procura de evidências. Rev Bras Reumatol 2006;46(Suppl 1):21-29.
  6. Behçet’s UK: https://behcetsuk.org/
  7. British Society for Rheumatology COVID-19 guidance. https://www.rheumatology.org.uk/practice-quality/covid-19-guidance