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Tudo sobre como manejar um caso de paciente com epidermólise bolhosa.
História clínica
D.F.M.L., 4 anos e 3 meses, gênero masculino, faioderma, natural e procedente de cidade do interior. Nascido a termo, apresentando lesões bolhosas em região cefálica, lábios e membros, com posterior descamação, as quais já foram observadas durante parto. Pais não consanguíneos, mas dispõem de dois casos de epidermólise bolhosa em parentes de 2º grau. No segundo dia de vida, foi transferido para o hospital de referência para esclarecimento diagnóstico, propedêutica e seguimento. De acordo com a avaliação dermatológica, o quadro é compatível com patologia bolhosa. Foi avaliado também pela equipe de oftalmologia e identificadas alterações oculares bilateralmente. Alta com 60 dias de vida e os responsáveis orientados quanto ao manejo. Não recebeu aleitamento materno, devido às lesões na cavidade oral, fazendo uso de NAN até os 2 anos de idade. Iniciou alimentação complementar aos 4 meses de idade, porém não balanceada. No entanto, ainda hoje apresenta dificuldade para alimentar-se, devido a lesões em cavidade oral, principalmente em períodos de exarcebação.
Mãe relata constipação intestinal com esforço evacuatório, doença hemorroidária e piúria macroscópica. Sem queixas em demais sistemas.
Alega episódios recorrentes de infecção de vias aéreas superiores (rinofaringite e síndrome gripal). Apresenta higiene precária e lesões constantemente infeccionadas.
Bom desenvolvimento neuropsicomotor, sem nenhuma alteração evidente.
Atualmente faz uso de loratadina, dexclorfeniramina, Addera D3, Neutrofer, Protovit, dexametasona, Cetaphil hidratante, Mepilex Border/transfer.
Exame físico
Geral: Lúcido e orientado no tempo e no espaço, ativo e cooperativo, fácies atípica, anictérico, acianótico, apirético, ausência de edema, hipocorado (3+/4+), hidratado, eupneico, hipotrófico.
Sinais vitais: FC: 104 bpm; FR: 26 irpm; PA: 94/60 mmHg; Temperatura: 36,3°C; Peso: 12,8 kg.
Pulmonar: tórax simétrico, ausência de abaulamentos ou retrações, diâmetro látero-lateral maior que ântero- -posterior, padrão respiratório abdominal, presença de lesões bolhosas e crostosas em tórax, sendo algumas infeccionadas e eritematosas. Frêmito toracovocal presente e normodistribuído bilateralmente. Expansibilidade e percussão não foram possíveis de serem avaliadas. À ausculta, murmúrio vesicular fisiológico, sem ruídos adventícios.
Cardíaco: ictus não visível e não palpável, ausência de turgência jugular. Ausência de frêmito cardíaco. Pulsos arteriais periféricos simétricos, sincrônicos e com boa amplitude. À ausculta, bulhas normorrítmicas e normofonéticas em dois tempos, sem sopros, atritos e estalidos.
Abdome: globoso, simétrico, ausência de retrações, abaulamentos, circulação colateral ou herniações, cicatriz umbilical em posição fisiológica, pulsação de aorta abdominal não visível. Presença de flictenas e lesões crostosas, inflamadas e infeccionadas. À ausculta, ruídos hidroaéreos presentes em todos os quadrantes abdominais, ausência de sopros aórticos e renais. Não foi possível realização de palpação e percussão.
Pele/anexos: lesões bolhosas em grande parte da superfície corporal infeccionadas e com crostas, com predominância nos pés. Apresenta algumas cicatrizes hipocrômicas, devido a lesões pregressas. Presença de milium em região facial. Além disso, lesões em cavidade oral. Ausência de unhas.
Neurológico: Bom desenvolvimento neuropsicomotor.




Exames complementares
Na avaliação oftalmológica foram identificados leucoma bilateral e cicatriz córnea esquerda. Em hemograma, apresentava anemia grave.
QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO
1. Com base na anamnese completa e exame físico minucioso, qual a hipótese diagnóstica?
2. Qual a propedêutica de investigação?
3. Quais os diagnósticos diferenciais mais relevantes?
4. Quais os cuidados necessários com os portadores da doença?
5. Quais as novas estratégias de tratamento?
Discussão do caso de epidermólise bolhosa
A epidermólise bolhosa (EB) é definida como um grupo de dermatoses raras e heterogêneas, caracterizada pelo desenvolvimento de bolhas na região cutâneo-mucosa de todo corpo, em resposta a fatores ambientais ou a nenhuma causa aparente4 , podendo ser autossômica dominante ou recessiva, acometendo diversos locais cromossômicos e resultando em mais de 30 apresentações fenotípicas5 . A EB é dividida em congênita/hereditária ou adquirida. A congênita possui 4 classes: simples (generalizada e localizada), juncionais, distróficas e uma nova classe, a síndrome de Kindler11. A epidermólise bolhosa distrófica se subdivide em quatro subtipos principais, dois na forma autossômica dominante e dois na forma autossômica recessiva10, classe na qual o paciente possivelmente pertence. As subdivisões se diferem nas manifestações físicas e também, microscopicamente:


Essa doença pode-se manifestar ao nascimento ou durante os primeiros anos de vida, assim como no caso4 , sendo a ocorrência de EB congênita muito rara5 . No Brasil, os dados epidemiológicos são escassos3 , porém é conhecido que a EB ocorre em todas as raças do mundo e não há diferença na sua incidência entre os sexos4 . Nos Estados Unidos, estima-se a ocorrência de 50 casos por 1.000.000 nascidos vivos, sendo 92% deles na forma de EB simples, 5% na forma distrófica e 1% na forma juncional e 2% não classificados. Sobre idade, a EB afeta indivíduos de diferentes grupos etários, mas a maioria dos diagnósticos é na infância4 .
A fisiopatogenia da EB foi associada a uma alteração da função do ácido hialurônico, da degeneração de proteínas, da deficiência de lipídios, do metabolismo mucopolissacarídeo e da adesão inadequada dos componentes do epitélio e da mucosa, que muda de acordo com o subtipo da patologia. Os portadores de EB distrófica possuem mutações em um mesmo gene, o COL7A1. Porém, o que determina cada subtipo são a localização e o tipo da mutação que ocorre nesse gene. O COL7A1 codifica o colágeno tipo VII, proteína que compõe as fibrilas de ancoragem que participam da adesão entre a lâmina densa e a derme na pele. Para a EBD já foram descritas mais de 730 mutações que levam a diferentes fenótipos da doença9 . Assim, um paciente afetado por essa doença terá desestabilização da junção dermoepidérmica e maior propensão à erupção de flictenas por todo o corpo12. Histologicamente, as bolhas possuem conteúdo seroso ou hemorrágico, eritrócitos, fibrina e escasso infiltrado linfocítico. Na derme papilar subjacente, observa-se infiltrado inflamatório misto, composto por eosinófilos, linfócitos, melanófagos e siderófagos, além de vasodilatação, infiltrado inflamatório e perda das papilas dérmicas. Os hemidesmossomos podem estar em número diminuído ou ausentes4 .
O paciente apresenta um quadro clínico clássico em que deve se suspeitar de epidermólise bolhosa distrófica recessiva, porém não foi possível a realização de exame confirmatório. A seguir, veremos as diferentes manifestações dos principais subtipos11:


O diagnóstico de EB é baseado em achados clínicos e laboratoriais. A microscopia eletrônica é o padrão-ouro no diagnóstico, por meio da histopatologia, que determina o nível da clivagem, porém pode-se utilizar imunofluorescência e mapeamento imuno- -histoquímico, mapeamento antigênico e antígenos monoclonais específicos. Western blot, Northernblot, análise de polimorfismo do comprimento de fragmentos de restrição e sequenciamento de DNA podem, então, identificar o gene mutante.
A subclassificação é importante na determinação do risco de envolvimento da mucosa, o desenvolvimento de neoplasias e morte prematura7 , além de fornecer subsídios para o aconselhamento genético6 .
É necessária a realização de um diagnóstico diferencial de outras doenças bolhosas como: pênfigo, penfigoide bolhoso, dermatite herpetiforme, porfiria cutânea tardia, cútis aplástica4 , dermatite bolhosa por igA linear, queimaduras, bolhas isquêmicas, bulose diabeticorum2 , porfiria1 , eritema tóxico, síndrome da pele escaldada2 , impetigo ou síndrome de Stevens-Johnson4 .
O princípio básico para a terapêutica do paciente com EB é evitar a formação de novas bolhas e prevenir infecções, além de cicatrizes, retrações e sinéquias, por meio de um cuidado excessivo com pele e mucosas4 . Até o presente momento, não há terapia específica para nenhuma forma de EB, porém o cuidado com o paciente é multiprofissional e inclui o tratamento sintomático e das feridas com punção e com uso de curativos estéreis, acompanhamento nutricional e oftalmológico, suplementação ou dieta rica em ferro, zinco, proteínas e carboidratos, uso de antibiótico para prevenção de infecções, além de acompanhamento psicológico. Novas estratégias têm sido desenvolvidas, como terapia gênica, uso de toxina botulínica, transplante de células-tronco da medula óssea e infusão de proteínas recombinantes8 .
As complicações são diversas e as mais graves incluem a estenose do esôfago e da laringe, desnutrição, anemia, aumento da susceptibilidade de infecções, sepse, cardiomiopatia, carcinoma escamocelular e acometimento ocular grave4 . Outras complicações são as infecções secundárias, bem como a ocorrência de cáries e perda precoce da dentição3 .
Diagnósticos diferenciais principais

Objetivos de aprendizado/ competências
- Estudo semiológico da epidermólise bolhosa;
- Classificação dos tipos;
- Critérios para confirmação diagnóstica;
- Diagnósticos diferenciais;
- Manejo do paciente pós-diagnóstico.
Pontos importantes
- A EB consiste em um grupo de dermatoses hereditárias ou adquiridas raras.
- Herança genética, morbidez associada, gravidade e extensão das lesões determinam a sua classificação.
- A suspeita diagnóstica é baseada na história clínica e exame físico minucioso.
- É necessário realizar o exame anatomopatológico para confirmação diagnóstica.
- O diagnóstico diferencial é importante para excluir outras patologias que cursam com quadro clinico semelhante à EB.
- O manejo clínico baseia-se em evitar a formação de novas bolhas, cuidado adequado das lesões e reconhecimento precoce de complicações.
- Suplementação com vitaminas, minerais e tratamento sintomático melhoram a qualidade de vida e o prognóstico dos portadores da doença.